Título: Pesquisa com embriões tornou-se questão de fé
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Fonte: Valor Econômico, 05/03/2008, Opinião, p. A18

O Supremo Tribunal Federal (STF) será hoje o palco do segundo round entre a Igreja Católica e cientistas em torno de pesquisas com células-tronco extraídas de embriões humanos. Durante todos os anos de tramitação da Lei de Biossegurança aprovada em 2005, a Igreja desempenhou um papel ativo para impedir o estudo de células-tronco (pluripotentes), que têm a propriedade de se transformar em células capazes de substituir outras que perderam a capacidade ou nunca funcionaram - uma esperança de cura para doenças degenerativas.

Os católicos conseguiram em 2005 uma meia vitória - ou evitar a derrota total - ao transformarem um projeto que resultaria em uma maior liberdade às pesquisas terapêuticas com células-tronco em uma lei com regras estritas para o uso de embriões. Segundo a lei aprovada, as pesquisas só podem ser feitas com embriões descartados (isto é, aqueles que não servem para ser implantados em ovários) por clínicas de reprodução humana e naqueles congelados há mais de três anos, e desde que com autorização dos pais. É essa a realidade com que trabalham hoje os cientistas brasileiros.

É dessa lei, já restritiva, que Cláudio Fonteles, na qualidade de procurador-geral da República, questionou a constitucionalidade, logo após a promulgação. O argumento jurídico é o de que, como os embriões têm que ser destruídos para a retirada das células-tronco, esse procedimento científico atentaria contra o preceito constitucional de garantia à vida. Seria uma espécie de aborto - de uma vida que jamais iria existir, já que a lei permite o uso científico apenas dos embriões cujo destino seria o lixo. Fonteles leu a lei e julgou-a com os olhos da Igreja Católica - a única no Brasil que se opõe às pesquisas com células-tronco - quando era o procurador-geral de um Estado laico, onde convivem várias religiões e nunca prosperou o fundamentalismo religioso. A parte "ofendida" que questiona o artigo 5º da Lei de Biossegurança continua sendo a procuradoria-geral, cujo titular, hoje, é Antonio Fernando de Souza.

A oposição religiosa quer criminalizar uma questão que é científica e jurídica. Os católicos que se envolveram nesse embate entendem que a vida existe no momento da fecundação. A célula-tronco é extraída do embrião até cinco dias da fertilização do óvulo - e na reprodução natural o embrião tecnicamente existe apenas depois do 6º dia da fecundação. A Igreja, no entanto, equipara a extração das células-tronco ao aborto. Essa é a mesma posição que levou os EUA a proibirem a utilização de verbas públicas em pesquisas com células-tronco, na esteira do fundamentalismo religioso de seu presidente, George W. Bush. Mesmo assim, os adeptos de Bush não foram tão obtusos a ponto de proibir in limine todas as pesquisas com células-tronco. Elas são liberadas, desde que feitas com o dinheiro privado.

A questão agora está nas mãos do Supremo. Se houver contaminação religiosa no julgamento, corre-se o risco de a Igreja conseguir derrubar uma lei que não conseguiu derrotar no Congresso, embora tenha feito todo empenho para isso. Para firmar o Estado laico e liberar a ciência brasileira para aquela que é hoje a mais importante linha de pesquisa para a cura de doenças degenerativas, no entanto, o STF não pode sequer se dar ao luxo de adiar o julgamento. Tem que rejeitar de vez a ação direta de inconstitucionalidade contra a Lei de Biossegurança. Os centros de pesquisa brasileiros estão praticamente parados, esperando uma definição da mais alta Corte do país. Se algum ministro do tribunal pedir vistas, e adiar por mais tempo o julgamento da questão, corre-se o risco de atrasar ainda mais as pesquisas na área. A permissão de uso apenas dos embriões descartáveis já dificulta que o Brasil desenvolva sua própria linhagem de células-tronco, o que daria maior autonomia aos nossos pesquisadores. Mas, mesmo com essa precária permissão, o fato de ela estar subjudice tem retardado o investimento nessas pesquisas. Para começar a tirar o atraso do país naquela que é a atualmente mais promissora pesquisa para se chegar à cura de doenças degenerativas, o Supremo tem que, rapidamente, despir de conteúdo religioso essa questão. Basta ser laico que o bom-senso prevalecerá.