Título: O risco de o Sistema Único de Saúde ficar à deriva
Autor: Marques , Rosa Maria
Fonte: Valor Econômico, 05/03/2008, Opinião, p. A18

Para o SUS, o ano de 2008 começou preocupante, pois sua consolidação depende da resolução de seu grave problema de financiamento. Se problemas existem no SUS, estão muito mais do lado das receitas do que das despesas.

A política macroeconômica das últimas décadas, e mais recentemente a do governo Lula, vem determinando as condições de financiamento do SUS e da Seguridade Social (SS). A partir dos anos 1980, o capital financeiro retornou soberano, determinando um "novo" papel ao Estado e garantindo o pleno crescimento de sua forma parasitária e fictícia. No Brasil, em 2007, foram despendidos cerca de R$ 160 bilhões com juros da dívida, valor correspondente a 3,3 vezes o gasto do Ministério da Saúde (MS) em ações e serviços públicos de saúde.

A priorização do financeiro (que fica evidente nessa relação) não só inviabiliza um crescimento sustentável, como impede o financiamento para as áreas sociais, principalmente da Saúde. Entre alguns economistas, a compreensão de que o social deva se subordinar ao "econômico" é vista com certa naturalidade, mas não há nada de natural nisso. Trata-se de uma escolha política.

O cumprimento das metas de inflação e de superávit primário resultou em tentativas de redução dos gastos públicos e em contingenciamentos na Saúde. Durante os governos Lula, depois de o MS ter ratificado a resolução 322 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), de maio de 2003, que definia ações e serviços públicos em saúde, a equipe econômica tentou fazer "passar" o pagamento de juros e a aposentadoria dos ex-funcionários desse ministério, por exemplo. Se não fosse a mobilização do Fórum da Reforma Sanitária (Abrasco, Cebes, Abres, Rede Unida e Ampasa), do CNS e da Frente Parlamentar da Saúde (FPS), essas tentativas teriam ido a termo.

Alguns esperavam que Lula resolvesse o problema do financiamento da área mediante o encaminhamento da regulamentação da EC 29. Afinal, os temas contemplados por ela foram objeto de longa discussão entre os representantes do CNS, do MS, dos Tribunais de Contas dos Estados e municípios e das demais entidades associadas à saúde pública. Um dos principais itens do PLP 01/2003, proposta que regulamenta o financiamento do SUS (EC 29), refere-se à substituição do valor apurado do gasto federal no ano anterior (corrigido pela variação do PIB nominal) por, no mínimo, 10% da receita corrente bruta. Em 2007, isso corresponderia a um aumento de R$ 20 bilhões na despesa executada pelo MS (R$ 48,3 bilhões). Esperava-se que, com a regulamentação da EC 29, os gastos com ações e serviços de saúde passassem da atual faixa de US$ 150/200 per capita para a de US$ 250/300. A regulamentação da EC 29 não se constituiu prioridade no governo Lula. Sua inclusão na pauta do Congresso, em abril de 2006, deveu-se à ação da FPS. Contudo, até hoje a matéria não foi apreciada.

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O interesse do governo pela regulamentação somente se manifestou quando da discussão sobre a continuidade da CPMF, ao final de 2007. Nesta oportunidade, ele apresentou uma contraproposta ao PLP 01/2003 onde, no lugar de garantir para a Saúde um percentual mínimo das receitas de seu âmbito, propunha um acréscimo escalonado da participação da CPMF em seu financiamento (que atingiria R$ 24 bilhões em 2011). Pensava o governo que essa imbricação entre a continuidade da CPMF e o financiamento da Saúde iria assegurar a prorrogação dessa contribuição. E muitos comemoraram a aprovação dessa contraproposta na Câmara, esquecendo que ela estava dissociada de uma real preocupação com o presente e o futuro do financiamento do SUS. Mas já que o Senado não aprovou a CPMF, a proposta do governo para o financiamento da saúde foi abortada. E a não resolução do financiamento da saúde permanece.

A CPMF surgiu para ser utilizada exclusivamente pela Saúde mas, no primeiro ano de sua vigência, o aporte de recursos na área foi acompanhado pela diminuição da participação da Cofins e da CSLL. Isso somente foi possível porque o governo federal poderia dispor de 20% da receita da SS mediante a atual DRU.

É preciso considerar que, além do Senado ter aprovado a continuidade da DRU, a extinção da CPMF prejudica de forma considerável a Saúde. Não só o SUS não conta com os recursos dela originada, como não foi definido qual seria a fonte que iria substituí-la. Em 2006, a receita da CPMF correspondeu a R$ 32,1 bilhões, sendo que 40,22% foram destinados à Saúde. Sem a CPMF e se consideramos constante essa participação, a Saúde corre o risco de perder R$ 16 bilhões, pois essa perda ocorre num cenário de não definição das fontes de seu financiamento, seja via contribuições, seja via impostos.

A continuar a atual orientação da política econômica, a tensão entre a área da saúde e a área econômica do governo será mantida. A primeira, compromissada com o SUS e, por isso, preocupada em garantir seu financiamento; e a segunda, restringida por uma política econômica fundada em metas de inflação e na geração de superávits primários. Para aqueles que defendem a atual orientação econômica, o conteúdo do PLP 01/2003 é visto como um retrocesso, pois define despesas e comprometimentos mínimos de receitas, o que estaria contrariando o esforço de geração de superávit primário. Ao mesmo tempo, isso limitaria o poder discricionário do governo, o qual não poderia alocar os recursos de acordo com seus interesses.

Torna-se imprescindível que os defensores de uma saúde universal e pública continuem a exigir que o governo federal assegure ao MS o mínimo de 10% da receita corrente bruta, conforme tratado pelo PLP nº 01/2003 da Câmara dos Deputados ou pelo PLS nº 121/2007 do Senado (ambos projetos de regulamentação da EC 29).

Rosa Marques é professora titular da PUC-SP, especialista em políticas sociais e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (1998 e 2002)

Áquilas Mendes é professor de Economia da Faap-SP, vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde e coordenador de Gestão de Políticas Públicas do Centro de Estudos de Pesquisa de Administração Municipal.