Título: Esboço da transição
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Fonte: Correio Braziliense, 07/02/2011, Mundo, p. 14

Mesmo sem a renúncia de Hosni Mubarak, vice-presidente reúne lideranças políticas do Egito e inicia o processo de mudanças democráticas. Comitê deverá ser criado em março, com a participação da Irmandade Muçulmana

No primeiro passo rumo à transição democrática, o vice-presidente do Egito, Omar Suleiman, deu início ao diálogo com as forças políticas do país, incluindo a Irmandade Muçulmana, principal movimento de oposição. Na quinta-feira, ele havia convidado os partidos a discutir a transição, mas, até sábado, lideranças contrárias a Hosni Mubarak se recusavam a conversar, colocando como condição a renúncia do presidente.

Mesmo sem o afastamento de Mubarak, porém, Suleiman conseguiu reunir os partidos ontem, na sede do Conselho de Ministros. Entre as principais medidas a serem tomadas, foi estabelecida a criação de um comitê, que deverá ser oficializado até março, encarregado de realizar reformas constitucionais. De acordo com o porta-voz do governo, Magdi Radi, houve consenso na reunião sobre a formação do comitê, que ¿contará com o Poder Judiciário e um certo número de personalidades políticas, para estudar e propor as emendas constitucionais e legislativas que se fizerem necessárias¿. As principais reformas da Constituição devem alterar os artigos 76 e 77, que estipulam os critérios para a candidatura à presidência e a quantidade máxima de mandatos do chefe de Estado.

Entre as concessões prometidas, estão o fim ao estado de emergência, decretado em 1981, a liberdade de imprensa e a libertação dos líderes dos protestos, que foram presos ao longo das duas últimas semanas. No encontro, parte da oposição pediu que Suleiman assumisse os poderes de Mubarak, pois o artigo 139 da Constituição do Egito permite que o presidente os delegue ao vice. Suleiman, porém, negou o pedido.

Além da Irmandade Muçulmana, que não era convidada ao diálogo desde 1954, participaram do encontro alguns grupos presentes nas manifestações realizadas desde 25 de janeiro. ¿Vamos participar do diálogo para debater, principalmente, a transição, a escolha de um novo presidente e de um novo parlamento que represente o povo¿, declarou à agência de notícias AFP Essam Al-Aryane, alto dirigente da Irmandade Muçulmana. Ainda assim, o principal movimento opositor ao governo considerou as propostas insuficientes. ¿As demandas são sempre as mesmas. O governo não respondeu à maioria delas, apenas a algumas, e de forma superficial¿, acusou Al-Aryane.

Renúncia ¿O protesto continua porque não houve garantias e não foram cumpridas todas as exigências¿, criticou Mosfatá Al-Naggar, partidário do prêmio Nobel da Paz Mohamed ElBaradei. ¿Aprovamos o que havia de positivo, mas ainda exigimos que o presidente renuncie¿, afirmou. ElBaradei, que não foi convidado a participar do encontro, afirmou ao canal de tevê americano NBC que as discussões de ontem foram ¿opacas¿. A saída do presidente, porém, está cada vez mais improvável. Em entrevista à rede de TV CNN, o primeiro-ministro do Egito, Ahmed Shafiq, reforçou que Mubarak fica no cargo até as eleições. A secretária de Estado americana, Hillary Clinton, também disse que pode ser necessário manter o presidente até o pleito.

Os Estados Unidos saudaram a iniciativa da reunião, principalmente a inclusão da Irmandade Muçulmana. ¿Soubemos da participação da Irmandade Muçulmana, indicando que, pelo menos, estão envolvidos no diálogo que estimulamos¿, afirmou Hillary.

No sábado, os EUA já haviam se manifestado otimistas com a renúncia da cúpula do Partido Nacional Democrata, que abriu mão da liderança da legenda, incluindo Gamal Mubarak, filho e herdeiro político do atual presidente. Logo depois do anúncio, o ex-embaixador americano no Egito Frank Wisner fez uma declaração polêmica à imprensa, defendendo a manutenção de Hosni Mubarak na liderança do processo de transição. Ele se referiu ao presidente como ¿um velho amigo dos EUA¿ e afirmou que a condução das mudanças pelas mãos de Mubarak era ¿crucial¿. O governo americano rapidamente se manifestou, garantindo que as declarações de eram pessoais e não em nome do país.

União No 13º dia de protestos, o Egito começou a voltar à normalidade. Embora os manifestantes prossigam acampados na Praça Tahrir, no Cairo, o clima era calmo. As ruas estavam cheias de motoristas e pedestres. Alguns bancos e estabelecimentos comerciais abriram as portas.

Pela tarde, muçulmanos e cristãos rezaram na praça. Os muçulmanos realizaram a prece diária das 12h e ajoelharam-se em direção a Meca. Depois, um grupo evangélico entoou duas canções, uma delas pedindo a paz, enquanto milhares de pessoas agitavam a bandeira egípcia fazendo o v da vitória com as mãos. Em seguida, um religioso cristão, Ihab Jarrat, recitou alguns salmos.

Milhares de manifestantes aproveitaram a oportunidade para lançar a mensagem de que as duas religiões estavam unidas contra Mubarak. ¿Os muçulmanos e os cristãos do Egito dizem: `Vá embora, presidente¿¿, declarou Jarrat, filho do escritor egípcio Edward Jarrat. Imediatamente, a multidão entoou o lema habitual: ¿Mubarak, vá agora¿. Os cristãos representam entre 6% e 10% dos 80 milhões de egípcios. A maioria é formada por ortodoxos, cujo patriarca, Shenuda III, pediu para que os fiéis não participassem das manifestações.

Partido banido

» O Ministério do Interior da Tunísia anunciou ontem a suspensão das atividades da Assembleia Constitucional Democrática (RCD), o partido do presidente deposto Zine El Abidine Ben Ali, e o fechamento de todos os seus escritórios, em um comunicado lido na televisão. ¿Com o objetivo de preservar o interesse supremo da nação e evitar qualquer violação da lei, o ministro do Interior decidiu suspender todas as atividades do RCD, proibir todas as reuniões e concentrações organizadas por seus membros e fechar todos os locais que pertencem ao partido ou que são geridos pelo mesmo¿, informou o comunicado.

O ¿faz-tudo¿ da diplomacia

O homem que conserta qualquer coisa. Entre negociadores internacionais, é assim que Omar Suleiman, 74 anos, vice-presidente do Egito, é conhecido. Em praticamente duas décadas como chefe da inteligência do país, ele esteve envolvido em quase todas as questões delicadas do Oriente Médio. Ajudou a negociar acordos de cessar-fogo, mediou conflitos entre israelenses e palestinos e até ajudou a interrogar suspeitos de terrorismo. Para muitos políticos egípcios, Suleiman é a esperança no desfecho de um desafio ainda maior: encontrar uma solução pacífica para a pior crise interna já enfrentada pelo país.

Saído da carreira militar para a política, o vice-presidente é visto como um líder sólido e competente, que tem o respeito do Exército, assim como o dos governos do Oriente Médio e do resto do mundo. Entre a população, porém, não é tão bem aceito, por estar vinculado ao serviço de inteligência. Ele é criticado por organizações de direitos humanos por ter trabalhado com a CIA em um programa de captura de suspeitos de terrorismo. Diversos ex-detentos afirmaram, depois, que foram torturados.

Mas, ao menos na teoria, Suleiman parece ter experiência e temperamento para enfrentar tempos de turbulência. Nascido em 1936, na cidade de Qena, serviu ainda jovem em três guerras, incluindo os conflitos entre o Egito e Israel em 1967 e 1973. Mais tarde, tornou-se o chefe da inteligência militar, até ser promovido por Hosni Mubarak a chefe do Serviço-Geral de Inteligência do país.

No caso de Suleiman, o cargo trouxe responsabilidades como promover a reaproximação entre as facções palestinas rivais Hamas e Fatah, por exemplo. Entre os dois lados, foi considerado um mediador ¿brilhante e imparcial¿. Os líderes israelenses também têm ótimas relações com o vice-presidente. Com o país, compartilha a preocupação do crescimento da influência do Irã no Oriente Médio. Já nos Estados Unidos, é considerado um dos mais poderosos chefes de inteligência do mundo árabe.

Entre a multidão que protesta nas ruas do Egito, Suleiman é tido como o mais leal subordinado de Mubarak. Além disso, teme-se que ele se sujeite aos EUA. ¿Um homem como Suleiman seria como um agente a serviço da América para preservar a estabilidade na região. O que é um eufemismo para a ditadura¿, disse recentemente Tom Malinowski, diretor da organização Humans Righst Watch, ao jornal norte-americano The Washington Post.