Título: Fornecimento de gás provoca disputa judicial
Autor: Góes , Francisco
Fonte: Valor Econômico, 08/01/2008, Brasil, p. A6

Maria D´Assunção Costa, especialista em regulação: é preciso que haja um "pacto federativo" para evitar conflitos Um conflito regulatório envolvendo o transporte e a distribuição de gás natural canalizado está colocando Estados contra a Petrobras, sócios privados da estatal e a União. São Paulo, Bahia e Sergipe questionam na Justiça o fornecimento de gás natural feito pela Petrobras para térmicas e unidades industriais controladas pela empresa sem passar pelas distribuidoras estaduais.

Para distribuidoras e governos estaduais, a prática configura o chamado "by pass", violando o sistema jurídico vigente. Existem discussões na Justiça sobre o fornecimento direito de gás natural feito pela Petrobras para térmicas e unidades de produção de fertilizantes na Bahia e em Sergipe e para a planta de GNL da Gás Local, em Paulínia, São Paulo. As distribuidoras estaduais de gás natural canalizado apegam-se ao artigo 25, parágrafo 2º da Constituição Federal, que definiu a distribuição do gás como uma atribuição dos Estados.

"Entendemos que o fornecimento direto de gás natural canalizado, sem passar pelas distribuidoras, está desalinhado em relação aos arcabouços constitucional, legislativo e regulatório", diz Armando Laudorio, presidente da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás). Ele diz que o "by pass" subtrai das distribuidoras um volume potencial de gás que poderia lhes assegurar maior competitividade e modicidade tarifária.

"Se tivessem esse volume adicional (de gás natural), as distribuidoras afetadas (pelo by pass) poderiam ter tarifa menor e crescer mais rápido", diz Laudorio. O problema hoje é o balanço entre oferta e demanda de gás natural para atender tanto indústrias quanto termelétricas. Especialistas entendem que a regulação existente no gás é insuficiente para tratar de situações novas que não existiam quando da promulgação da Constituição, em 1988, ou da aprovação da Lei do Petróleo, de 1997. Uma dessas situações é o fornecimento de gás natural para geração de energia em térmicas.

Segundo especialistas, falta uma definição legal clara sobre as atividades de transporte e a distribuição de gás natural canalizado. Hoje, o gás é regulado por dois regimes jurídicos diferentes: um estadual, que cuida da distribuição, e um federal, responsável pela produção, importação e transporte do insumo até os "city gates", que são estações de transferência do gás para distribuição nas cidades. A partir dos "city gates", a competência legal na distribuição do gás natural é dos Estados.

"Sobre o mesmo gás existem dois regimes jurídicos aplicáveis, diferente do setor elétrico onde há um só regime", diz a advogada Maria D´Assunção Costa, especialista em regulação de energia, gás e petróleo. Ela afirma que, embora a Constituição Federal descreva as atividades de transporte e de distribuição de gás natural canalizado, é preciso que haja um "pacto federativo" para que União e Estados harmonizem competências. "Assim podem ser evitados conflitos que trazem incerteza jurídica, regulatória e contratual aos agentes econômicos e aos usuários dos serviços", diz a advogada.

A discussão ganha importância com a expectativa de aprovação, em 2008, da Lei do Gás, que irá regulamentar o uso do gás natural no país. Entre os aspectos tratados pela lei, estão as definições de consumo próprio e de gasoduto de transporte. No jogo de forças no Congresso, os Estados se posicionaram contra a perspectiva de que o gasoduto de transporte possa ir até o usuário final, conforme consta do projeto que tramitará no Senado.

A medida, se aprovada na lei, iria ferir a autonomia constitucional dos Estados para legislar sobre a distribuição do gás, entende Julio Bueno, presidente do Fórum de Secretários de Estado para Assuntos de Energia. "A produção e o transporte são questões que competem ao governo federal, mas a distribuição é dos Estados", afirma Bueno.

Entre os especialistas não há otimismo de que a lei do gás, considerando o atual substitutivo do projeto do lei, vá resolver o conflito de regulação, deixando o problema para ser resolvido pelo Judiciário.

Procurada pelo Valor para comentar o fornecimento direto de gás natural feito pela empresa para plantas industriais no Nordeste, a Petrobras disse, por meio da assessoria, que trata-se de "transferência interna entre estabelecimentos de uma mesma empresa, não caracterizando operação comercial".

Uma fonte da área de regulação entende que a Lei do Petróleo definiu o que é gasoduto de transporte e de transferência, mas não de distribuição. Analistas do setor avaliam que o problema de regulação tende a aumentar já que a Vale, após ganhar áreas de exploração e produção de gás no leilão da Agência Nacional do Petróleo (ANP), em 2007, disse que pretende utilizar o insumo para consumo próprio em suas unidades industriais.

A iniciativa da Vale, se confirmada, poderá ser contestada pelas distribuidoras estaduais, pois elas tendem a considerar que estará sendo feito atendimento a consumidor final sem pagamento de margem para as distribuidoras onde o gás será consumido. Wagner Freire, presidente da Associação Brasileira de Produtores Independentes de Petróleo e Gás (Abpip), diz que a entidade é favorável a uma abertura "franca" da comercialização do gás natural canalizado no país.

Freire observa que só no Rio e em São Paulo, onde os serviços de distribuição de gás canalizado foram privatizados, se previu que os produtores de gás natural possam vender a produção diretamente para consumidores finais. No Rio, desde 2007, existe a possibilidade legal de o produtor vender gás natural diretamente para o consumidor, sem passar pela distribuidora, mediante pagamento de uma margem de distribuição para a concessionária, mas até agora não surgiu nenhum consumidor "livre" de gás natural canalizado no Estado.

Em São Paulo, também está previsto que ocorra a abertura na comercialização de gás no futuro. "Nos demais Estados o monopólio das distribuidoras (sobre a comercialização do gás canalizado) é forever and ever", diz Freire. Na verdade, compete a cada Estado definir o tempo que sua concessão terá para operar com monopólio na distribuição e comercialização do gás natural canalizado, diz a Abegás. Freire afirma que existe outro conflito de interesses relacionado ao fato de a Petrobras ser sócia de grande parte (20) das 27 distribuidoras estaduais de gás do país.