Título: Ritos banidos da prática orçamentária ressurgem
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 10/03/2008, Opinião, p. A14

O ano fiscal entrou no final do primeiro trimestre de 2008 sem que o Congresso tenha votado o Orçamento da União. O governo culpa a intransigência da oposição, mas o que parece cada vez mais claro é que a votação emperrou porque estão de volta antigos vícios na confecção da peça orçamentária. Aqueles mesmos que em 1993 levaram uma CPI do Congresso Nacional a acusar de corrupção 18 parlamentares, dos quais seis tiveram cassado o mandato, quatro renunciaram para escapar da punição e oito foram absolvidos.

Há 15 anos, a CPI dos Anões do Orçamento, como ficou conhecida, devido à baixa estatura de seus principais integrantes, fez um diagnóstico dos males que afligiam a Comissão Mista do Orçamento e deixou uma série de recomendações. Um pequeno grupo controlava a Comissão e um grupo um pouco maior, ainda assim pequeno, participava das vantagens dessa dominação. O Congresso como um todo não gostava da comissão porque não participava das práticas nem partilhava os resultados do que era acertado entre os anões. Entre as recomendações, a CPI propôs o fim das transferências da União para instituições privadas, as chamadas subvenções sociais, que estavam na raíz do esquema dos anões, e que fosse evitada a dispersão de recursos, o que entre outras coisas dava origem à infinidade de obras inacabadas. E que a Comissão Mista fosse objeto de permanente renovação, de modo a impedir a perpetuação de seus integrantes.

Na seqüência, uma resolução criou um número de emendas individuais de parlamentares ao Orçamento e determinou que essas emendas teriam destino municipal; fixou em 10 o número de emendas de bancadas, que seriam obrigatoriamente destinadas a obras estruturantes nos Estados ou de caráter regional; e as emendas de comissões temáticas (saúde, educação), para os projetos nacionais.

Desde então as emendas individuais aumentaram em número e valor (hoje é de R$ 8 milhões por cabeça de deputado e senador) e não têm mais destino predeterminado; as emendas de bancada aumentaram de 10 para uma média de 20, sem especificar a obra; e as emendas de comissão se tornaram, na prática, "emendas de ministério", por meio das quais os vários pedaços de governo disputam entre si uma fatia maior do bolo, em conluio com integrantes da comissão mista.

Paira sobre a Comissão Mista do Orçamento o fantasma dos anões. Ritos banidos da prática da tramitação orçamentária voltam a predominar. O Orçamento, por exemplo, é comandado por um pequeno grupo de parlamentares, tal como no passado. Ninguém ignora, no Congresso, que a votação do projeto está emperrada muito mais por disputa na partilha do butim, suprapartidária, diga-se, do que por artes da oposição, que é minoritária e não dispõe de combatentes em número suficiente para se opor à força do governo na votação de projetos de lei, que requer a maioria simples de votos.

Não é por acaso que a parte visível dessa disputa se dê em torno do chamado "Anexo 1", uma espécie de Orçamento paralelo de R$ 534 milhões incluído por esse pequeno grupo na peça de 2008. O "Anexo 1", tratado com o pomposo selo de "Metas e Prioridades", contempla emendas de cerca de 95 parlamentares e atende a projetos em pouco mais da metade dos Estados brasileiros - isso além das emendas parlamentares propriamente ditas, que somam R$ 14,3 bilhões.

Uma boa solução seria acabar com o tal anexo e destinar os recursos previstos para, por exemplo, combater o desmatamento da Amazônia, ou colocar essa verba nas emendas legítimas de parlamentares. Soluções, aliás, já aventadas no Congresso, mas que esbarraram sempre nos interesses do mesmo grupo. O governo lavou as mãos - no projeto original o "Anexo 1" não constava do Orçamento.

Enquanto deputados e senadores se engalfinham pelo butim, o Executivo governa com os restos a pagar do Orçamento de 2007, uma soma nada desprezível que chega a R$ 28 bilhões. E só com o duodécimo para financiar as despesas de custeio, o que não é de todo ruim, pois contribui para o aumento do superávit primário, o governo está impedido de tocar novas obras do PAC, já previstas e licitadas. Um entrave a mais para o crescimento, um passo atrás na boa prática orçamentária.