Título: Pobreza safa o Brasil da crise
Autor: Ribeiro , Alex
Fonte: Valor Econômico, 10/03/2008, Finanças, p. C12

Luís Eduardo de Assis: o Brasil tem uma cultura de regulamentação pesada e, por isso, o mercado é saudável O economista Luis Eduardo Assis, que foi diretor de política monetária do Banco Central e hoje é executivo-sênior do banco HSBC mundial, afirma que o Brasil tem ficado a salvo da atual crise internacional não propriamente por suas virtudes, mas pela falta da sofisticação típica dos mercados financeiros dos países mais desenvolvidos. "Essa é uma doença de rico", disse. "O Brasil não tem as características para pegar esse vírus."

Desde que a crise internacional se intensificou, em agosto de 2007, analistas econômicos vêm defendendo a tese de que a melhora dos indicadores de sustentabilidade externa e fiscal, como o acúmulo de reservas e a manutenção de superávits primários, blindaram a economia brasileira, limitando o alcance das turbulências originadas no mercado americano de hipotecas.

"Não temos a sofisticação necessária para se articular com essa crise internacional", afirma Assis, em entrevista ao Valor. Ele lembra que, nos Estados Unidos, a crise foi criada a partir do mercado de instrumentos derivativos, que permitiu às instituições financeiras tirar operações de crédito de seus balanços. No Brasil, esse mercado é ainda embrionário. "Paradoxalmente, essa falta de sofisticação nos favorece."

Assis foi diretor de política monetária do BC na gestão de Ibrahim Eris, entre 1990 e 1991. Depois de exercer vários cargos executivos no HSBC brasileiro, mudou-se em fins de 2007 para Londres para integrar um comitê que assessora a presidência mundial do banco na definição de investimentos e de estratégias.

Parte dos problemas que aconteceram no exterior, como a quebra do banco inglês Northern Rock, dificilmente ocorreria no Brasil, afirma Assis, porque a supervisão bancária do país é mais rigorosa. "Existe uma cultura de regulação mais pesada", afirma. "Essa é uma das razões porque o mercado brasileiro é absolutamente saudável." Ele não acredita que o rápido avanço do crédito ou a valorização das Bolsas vá criar bolhas no Brasil.

Valor: O Brasil vai ser atingido pela crise internacional?

Luis Eduardo Assis: Essa crise que afeta o Brasil. Aqui na Inglaterra há um clima de maior preocupação porque este é um mercado extremamente sofisticado, que durante os últimos dez anos ganhou estruturas engenhosas, criativas, sofisticadas. É uma doença de rico, e o Brasil não tem as as características para pegar esses vírus.

Valor: Por que não?

Assis: O mercado brasileiro é fechado. A gente gosta de dizer que o mercado brasileiro é sofisticado. Não é. Só é em alguns aspectos, principalmente naquilo que significa conviver com inflação alta. Fora isso, em termos de instrumentos financeiros, mercados derivativos, estamos começando. Não temos a sofisticação necessária para se articular com essa crise mundial. O que, paradoxalmente, nos favorece. Os bancos alemães tiveram dificuldades porque tinham alguma exposição a instrumentos subprime de outras partes do mundo. No Brasil isso é impensável.

Valor: Não haveria risco algum?

Assis: Para o Brasil, essa crise representa a diferença entre um crescimento do PIB muito bom e um crescimento do PIB apenas bom. O risco é pela economia real. A grande questão é até que ponto a economia americana vai entrar em recessão, se vai ter desaceleração na China e se isso no final das contas acaba impactando o preço das commodities, afetando economias emergentes. Em alguns países, o setor exportador puxa a economia. O México, por exemplo, tem exportação absolutamente brutal para os Estados Unidos. No Brasil, não. O setor exportador não puxa a economia, temos um enorme mercado interno. A conexão é indireta, via preços das commodities, que acabam influenciando a balança comercial. Como o regime de câmbio é flutuante, isso acaba pressionando o câmbio e gerando uma postura mais cautelosa do BC na política de juros que, aí sim, impacta a economia.

Valor: Então é vantagem não ser financeiramente sofisticado?

Assis: Alguém pode imaginar que, porque termos menor sofisticação, isso seja uma virtude em si. É uma virtude circunstancial. O caminho é outro. A gente pode aprender com erros dos outros, mas a integração é inexorável. Não se pode pensar que essa falta de desenvolvimento seja algo saudável. Não seria bom se os pensionistas de um fundo de pensão se beneficiassem da valorização das ações nos Estados Unidos ou na China? É normal que isso ocorra. Circunstancialmente, acabou sendo um ponto positivo. Isolou o Brasil do contágio do que está acontecendo no mundo. Mas o caminho não é o isolamento.

Valor: O crédito no Brasil se expande a taxas impressionantes. Não estamos criando uma crise?

Assis: Não temos subprime, não temos um mercado de securitização. A coisa mais parecida com a securitização são os fundos de recebíveis, que são absolutamente conservadores, regulados, limitados, com importância muito pequena. Não existe mercado secundário, não há estrutura de derivativos fora dos balanços dos bancos, que vão ao final das contas alavancar tudo isso.

Valor:

Assis: De forma nenhuma. Existe uma diferença muito grande entre automóveis e imóveis. A crise de hoje é importante porque vem no rastro de um movimento especulativo do mercado imobiliário, onde o prazo médio de financiamento é incomparavelmente maior do que no financiamento de veículos. O financiamento médio de imóveis chega a 35 anos.

Valor: Os prazos dos financiamentos de automóveis no Brasil, que chegam a 99 meses, não são altos relativamente à vida útil do automóveis, de cerca de 60 meses?

Assis: A questão é que, se tiver um problema no financiamento de automóveis, em pouco tempo dá para sair disso, porque o prazo vai vencendo, para o bem ou para o mal. O giro da carteira é muito mais rápido. Você pode mudar o critério de concessão de crédito e em pouco tempo renova aquela água suja. No financiamento imobiliário, não tem essa alternativa, demora muito. O financiamento imobiliário no Brasil é equivalente a 2% do PIB. Tem o problema de legislação, que não favorece a securitização. O típico no Brasil é o banco ficar com a operação na carteira por 20, 25 anos. É a modalidade mais simples que existe de financiamento imobiliário.

Valor: O financiamento imobiliário ainda é pequeno, mas avança rapidamente. Não poderíamos criar uma bolha?

-------------------------------------------------------------------------------- O preço dos bancos no Brasil é 50% maior que na Europa. É caro porque o sistema financeiro do país é sólido" --------------------------------------------------------------------------------

Assis: O que hoje se vê nos mercados financeiros dos EUA e Europa é a digestão de um movimento especulativo, basicamente do crescimento dos preços dos imóveis. Os imóveis são a garantia dos financiamentos imobiliários. Se a garantia se valoriza, os emprestadores tendem a ser lenientes, porque o devedor está ficando cada vez mais rico. Então os financiamentos começam em 80% do valor do imóvel, passam a 90%, sobem para 100%. Os bancos chegaram a fazer mais de 100% do valor do imóvel. No Brasil, vimos durante muitos anos uma situação de juros muito altos, que acabam sufocando os preços dos imóveis. Na Inglaterra, o preço médio dos imóveis equivale a cerca de nove anos da renda. No Brasil, a gente não tem as estatísticas. Mas com certeza é muito menos - arriscaria que equivale a duas vezes a renda.

Valor: Os juros são altos para os padrões desenvolvidos, mas são relativamente baixos para o histórico brasileiro. Não seria o suficiente para causar problemas?

Assis: Você sacaria todos os recursos que mantém aplicados para comprar um imóvel na expectativa de que, em um ano, ele vai se valorizar 25% ou 30%? As pessoas fizeram isso aqui na Inglaterra durante muitos anos. E, como em todo o movimento especulativo, são profecias auto-realizáveis. O cidadão compra o primeiro imóvel para morar. Compra o segundo e aluga. O imóvel se valoriza e, com o aluguel, ele paga o financiamento. E aí gosta do negócio -e vai para o terceiro imóvel. No Brasil, é o contrario. Se você vai comprar um imóvel, de preferência não financia, não gosta de dívida. Paga o máximo que puder de entrada e, assim que puder, livra-se da dívida.

Valor: Não estaria ocorrendo inflação no preço dos imóveis no Brasil? Empresas que abriram o capital nas Bolsas estão comprando terrenos na cidades, puxando os preços. Falta de cimento, mão-de-obra...

Assis: Isso pode gerar problemas? Pode. Mas não do tipo que estamos vivendo aqui fora, que não é resultado simplesmente de um aquecimento do mercado imobiliário. Aconteceria algo semelhante apenas se o mercado brasileiro se sofisticar, se a cultura dos orgãos reguladores mudar.

Valor: Por que não?

Assis: Existe uma cultura de regulamentação mais pesada no Brasil. O Brasil tem uma experiência muito traumática, com as grandes liquidações bancárias nos anos 1980 e 1990. O BC olha com todo o cuidado a solvência do sistema financeiro. Essa é uma das razões pela qual o mercado financeiro é absolutamente saudável, o que é bom. O BC brasileiro é bastante eficaz. Ninguém conseguiria fazer no Brasil o que a Northern Rock fez.

Valor: Mas no Brasil sempre nos surpreendemos com a quebra de instituições financeiras...

Assis: Você pode se surpreender com coisas como que aconteceram no Société Générale, onde houve fraude. O Northern Rock é um trabalho de anos, é uma visão de negócio. Captou no mercado institucional, de curto prazo, emprestou para financiamento imobiliário, de longo prazo, para pessoas físicas. No Brasil, se algum banco, pequeno, médio ou grande, começa a fazer isso, a fiscalização do BC percebe imediatamente. O BC impediria esse descasamento de prazos.

Valor: Mas a regulação mais rígida não torna a economia menos atrativa para os capitais?

Assis: Os bancos no Brasil são mais caros do que na Europa, mesmo com alavancagem menor. Se você for comprar um banco, vai pagar preço que equivale a 15 ou 16 vezes o lucro. O preço médio na Europa é 10 ou 11 vezes. O preço dos bancos no Brasil é, portanto, cerca de 50% maior que na Europa. Por isso que não tem compras maciças de bancos no Brasil. São caros. Principalmente, porque esses são mercados que vão crescer muito sem maiores crises ao longo dos anos. O mercado brasileiro é sólido. É um pais com estabilidade política, das regras do jogo, que se livrou da inflação. Tem uma população que está emergindo, mercado consumidor que cresce, mercado financeiro ainda não sofisticado, mas que vai se sofisticar. Agora, porque é tudo bom, custa muito.

Valor: Então a saída para evitar crises como a atual é mais regulação bancária, como já está previsto em Basiléia 2?

Assis: Diminuiria o risco de acontecer o que aconteceu aqui na Inglaterra. Regulamentação é importante. Desregulamentar o mercado financeiro não é necessariamente a solução. Na maioria das vezes, existe um comportamento de manada. Se eu faço algo e os outros fazem a mesma coisa, você induz cada um dos participantes a repetir o mesmo comportamento. Enquanto houver música, estão todos dançando. Uma das lições da crise é que a desregulamentação tem limites. Se desregulamenta demais, depois da crise a reação vai para o outro extremo. Tem analistas hoje defendendo que deve haver uma regulamentação do pagamento dos bônus. Por que tem essa reação tão exagerada? Porque por algum tempo se achou que qualquer instituição poderia fazer qualquer coisa, assumindo que os clientes entendem tudo. Não é assim. Aqui na Inglaterra, centenas de pessoas de idade fizeram fila debaixo de chuva na porta do Northern Rock.

Valor: E tem alguma lição específica para os reguladores bancários?

Assis: Uma coisa interessante, que vale a pena discutir, é se vale fazer a divisão do BC em duas entidades, uma para cuidar da política monetária e outra para fazer a supervisão bancária. Aconteceu em vários países. Muita gente acredita que, se não tivesse tido a divisão, os BCs teriam condições de antecipar o que estava acontecendo. Concordo com isso. No caso do Brasil, em que tem um BC único, é mais simples coletar as informações e verificar, por exemplo, se existe descasamento de prazos. O BC no Brasil controla muito bem isso.

Valor: Não seria papel do BC vigiar se os ativos não estão muito valorizados?

Assis: O BC de qualquer país do mundo trabalha para controlar a inflação. Mas é a inflação dos fluxos, não do preço dos estoques. Mede o preço dos ativos que compramos nos supermercados, dos carros, do aluguel. Mas não mede a inflação dos preços dos ativos. Há quem proponha que a inflação relevante que o BC tem que olhar é a de inflação que incorpora a valorização dos ativos, para evitar o que aconteceu.

Valor: Tivemos no Brasil uma onda recente de ofertas iniciais de ações e os preços das ações subiram muito. O BC teria que agir para evitar bolhas?

Assis: Mas qual é o impacto disso? A economia brasileira é imensa. Qual é o impacto da Bolsa? Se a bolsa cai, se bolsa sobe, qual é o impacto disso na demanda? Temos ainda muito o que crescer para ter esse tipo de problema. A gente está falando de uma economia que é complexa, que depende fundamentalmente da demanda interna. Essas pequenas oscilações no mercado financeiro não influenciam a vida das pessoas. Influenciam as manchetes de um país que lê pouco, que acompanha pouco o noticiário. Se a Bolsa cai 5% em um dia vai estar no jornal no dia seguinte. Mas a vida das pessoas não muda.