Título: Martins cobra uma posição firme sobre planos do governo para Varig
Autor: Vanessa Adachi
Fonte: Valor Econômico, 11/02/2005, Empresas &, p. B1

Um posicionamento claro do governo a respeito do que fazer com a dívida que tem a receber da Varig é a principal dificuldade do plano de reestruturação que está sendo idealizado pelo Unibanco. É o ponto de partida. Quem diz isso é o presidente da companhia, o comandante Carlos Luiz Martins. Piloto com mais de 22 mil horas de vôo e funcionário da Varig há 35 anos, Martins assumiu a presidência há pouco mais de um ano, em um dos momentos mais delicados de sua história. A tentativa de fusão com a TAM já tinha feito água no início de 2004 e não havia uma idéia brilhante para substituí-la. Depois de quase sofrer uma intervenção governamental no fim do ano passado - tida então como a última saída para a crise financeira da empresa- a Varig recentemente reconquistou espaço nas conversas com o governo para tentar recuperar a empresa. Martins está otimista e acredita que o plano em gestação, que deverá apoiar-se no arcabouço da recém-aprovada Lei de Falências, tem mais chances de sucesso que tentativas anteriores. Aos 58 anos, Martins é uma figura polêmica. Seu temperamento é difícil e de reações passionais, dizem pessoas que o conhecem. Uma de suas características mais marcantes é falar tudo o que pensa a qualquer um, sem medir muito as conseqüências. Meses atrás, ele telefonou pessoalmente ao presidente de uma concorrente para dizer que desaprovava declarações que o outro dera à imprensa. Apesar desse excesso de franqueza - ou talvez ajudado por ele - Martins conseguiu renegociar dívidas com alguns dos principais credores da Varig, permitindo que a companhia voltasse a ficar adimplente. O cobertor, no entanto, continua curto e muitas vezes são os funcionários que pagam com atrasos em seus salários pelo esforço de deixar os credores satisfeitos.

"Essa administração da Varig tem cumprido tudo o que combinou conosco", afirma Alexandre Silva, presidente para a América Latina da General Electric, uma das principais credoras da companhia. "Essa postura viabilizou um acordo com a GE, que há muito tempo estava sem receber da Varig." Antes do carnaval, quando viajaria para uma estação de esqui, Martins recebeu o Valor para uma entrevista sob a condição de não entrar em detalhes sobre o plano de recuperação. A conversa aconteceu em seu escritório, no Rio, antes da aprovação da nova Lei de Falências. Nela, ele lamentou o fim do code-share com a TAM e admitiu que a companhia pode perder o segundo lugar no mercado para a Gol. Ao fundo, o som de óperas tocadas em um moderno iPod da Apple, que destoava totalmente da decoração um tanto ultrapassada da sala. "Por acaso eu tinha que usar uma vitrola a manivela?" Valor: A impressão que se tem é que, desde que o vice-presidente José Alencar assumiu a pasta da Defesa, a Varig voltou a participar das discussões sobre uma solução para a empresa. Isso é verdade? Carlos Luiz Martins: Houve uma mudança drástica na condução do assunto. Com o (José) Viegas, nós estávamos alijados do processo. Agora há um diálogo mais direto, franco e transparente. O ministro da Casa Civil (José Dirceu) tem se colocado favoravelmente a uma solução. Valor: Planos semelhantes, com alongamento de dívida e troca de débitos por capital, já foram tentados no passado, sem sucesso. Martins: As chances agora são maiores. A fusão com a TAM não foi adiante porque ambas as companhias não quiseram. Valor: Mas o que mudou? Martins: Estamos buscando leis de mercado. Naturalmente, há a participação do governo, que tem que saldar suas dívidas (com a empresa). Valor: Quais serão as principais dificuldades no processo atual? Martins: Uma posição clara do governo sobre o que quer fazer. Se o governo quer ter uma companhia de bandeira, internacional. Há várias áreas do governo e cada uma quer uma coisa. A Fazenda (Ministério) quer uma, a Defesa, outra. A Casa Civil pensa diferente e o Legislativo quer outra coisa. Se houver uma decisão do governo para resolver o problema da Varig, eles dispõem de todos os instrumentos, sem exposição política, para fazer isso. Valor: Quais instrumentos? Martins: Vários. Acerto de contas, fazer uma operação de capitalização pelo BNDES. Basta que haja uma decisão política para isso. Pode até mesmo trocar os controladores, o que já foi inclusive aceito pela Fundação Ruben Berta. Basta sair do discurso para a ação. Valor: O governo também tem que decidir sobre o que fazer com relação ao que tem a receber da Varig? Outros credores dizem que estão esperando por isso, porque o governo é o maior deles. Martins: Claro, principalmente. Diria que é a única dificuldade (posicionamento do governo). Superado isso, é só ver tecnicamente como fazer a reestruturação. Valor: Como se deu a escolha do Unibanco como assessor financeiro da empresa? Há informações de que foi uma escolha direta do vice-presidente. Martins: É um banco com o qual já temos um relacionamento antigo. Valor: Houve grande polêmica em torno da contratação da Trevisan, que é auditora da empresa, como consultora. Há uma regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários contra. Como ficará isso? Martins: A Trevisan pode ser contratada como consultoria, mas voltada para auditoria no processo. Ela está validando os números, o que foge do contrato original de auditoria dos balanços. Ela participa porque tem uma grande credibilidade dentro do governo, para que o governo acredite nos números que apresentamos. Valor: Além de uma reestruturação financeira e societária, deverá haver uma reestruturação operacional, com redução de custos? Martins: Mas isso é uma mudança constante. Só não aprofundamos porque não temos dinheiro. Precisa de novos processos, novas tecnologias, trocar a frota. Um Boeing 777 voa a mesma distância e carrega mais ou menos o mesmo número de passageiros que um MD-11, mas queima 12% a menos de combustível. Imagina o que isso significa numa companhia que faz vôos internacionais. É um caminhão de dinheiro no fim do ano. Valor: E o que não depende de investimento, que é corte de pessoal? Martins: Isso é uma falácia muito grande. Todo jornalista diz que a Varig está inchada, e eu queria que me mostrassem onde. Não façam a conta de dividir número de funcionários por aviões, porque estão comparando um Fokker ou um 737, que levam seis tripulantes, com um avião de rota internacional que leva 17 tripulantes. Valor: A Varig não precisa cortar funcionários? Martins: Alguma coisa tem. Mas não é significativo. Até porque, se ela demitisse todos os funcionários, seu problema não estava resolvido. Seu problema é de capitalização. Seus índices operacionais, de custo, são bons. Todos se vangloriam de ter custo operacional mais baixo. Claro, a frota deles é nova. Só no ano passado enxugamos mil funcionários. Em 1994 nós tínhamos 27 mil funcionários e hoje temos 11,5 mil. Valor: E a remuneração na Varig? Costuma-se dizer que é elevada em relação à concorrência. Martins: É natural que uma companhia que começa do zero, e ainda contrata aposentados que têm outras fontes de renda, tenha um patamar de remuneração mais baixo. Se eu começasse uma companhia hoje, teria custos mais baixos do que as que aí estão como exemplo de eficiência. Outra falácia é que comparam remuneração fixa, com remuneração total. Nosso salário fixo é mais alto e o da concorrência é mais baixo. Em compensação, nosso variável é mais baixo que o deles. Valor: É verdade que há investidores interessados na empresa. O senhor pode indicar nomes? Martins: Existem vários interessados, mas eu não posso citar nomes porque eu tenho acordos de confidencialidade assinados. Valor: Que tipo de investidores? Martins: De todo tipo, porque a Varig é um bom negócio. Valor: Sem a dívida... Martins: Mas todos os investidores estão esperando um posicionamento do governo. Valor: A Fundação Ruben Berta, controladora da Varig, foi um obstáculo em tentativas passadas de recuperação da empresa. Como está a relação hoje? Martins: Em março de 2002 ela fez uma assembléia e colocou em ata, registrada no Ministério Público, a sua intenção de aceitar a diluição de sua participação. Valor: A fundação passou por grandes turbulências nos últimos anos, com troca de lideranças. Como estão os ânimos agora? Há grupos contrários ao senhor lá dentro? Sente-se apoiado? Martins: A companhia está pacificada e coesa. Divergências são sadias. Mas eu posso te garantir que a maioria expressiva busca uma solução para a Varig e eu me sinto definitivamente apoiado pelo colégio deliberante da Fundação, que é o órgão máximo. Valor: Como fica a Varig com o fim do code-share com a TAM? E o mercado, como fica? Como as duas empresas irão se ajustar? Martins: Tanto a Varig quanto a TAM estão cansadas de ter os desenhos de suas malhas sem o code-share. Já estão preparadas. Mas o fim do compartilhamento vai tirar a otimização e as duas empresas vão perder. E é assim que eles (Cade) contribuem para a recuperação do setor. Valor: E a taxa de ocupação (passageiros por vôos) vai piorar? Martins: Claro, de ambas. Valor: O passageiro será prejudicado? Martins: Não tem dúvida. Haverá menos opções de horário. A racionalização da utilização da frota fará com que algumas cidades de baixa rentabilidade deixem de ser atendidas. Valor: Nesse período em que vigorou o compartilhamento de vôos, a Varig perdeu para a TAM a posição de líder do mercado doméstico. Foi efeito do code-share? Martins: Era natural que nós perdêssemos, porque nós tínhamos passageiros a mais e aviões a menos (por conta de arrestos). E a TAM tinha passageiros a menos e aviões a mais, porque tinha se super equipado. Mas não reclamamos da fatia que restou. Valor: Teria sido pior sem o code-share? Martins: Seria, porque continuaria a guerra tarifária, uma brigando com a outra. Talvez a Varig tivesse perdido mais mercado, algo como dois pontos percentuais. A Gol talvez tivesse avançado mais. Valor: Vocês acreditam que podem perder a segunda posição para a Gol? Martins: Depende da solução que vier para a Varig. Valor: Há projeções dizendo que, dado o crescimento da frota previsto para este ano, em determinado momento do ano a Gol ultrapassará a Varig. Martins: Não estou preocupado com participação de mercado, eu prefiro ter uma fatia menor ganhando dinheiro. Valor: Então, pode acontecer? Martins: Pode. Valor: Vocês estão trazendo aviões para o fim do code-share? Martins: Para o fim do code-share, não. Valor: Vocês vão ajustar a programação de vôos com os aviões que estão aí? Martins; Deve ter um aumento da frota que ainda não está definido. Valor: Houve renegociação de dívidas com credores nesse período em que o senhor está na presidência da empresa... Martins: Com os credores privados e internacionais, principalmente. A Gecas (leasing) e a GE Motores, por exemplo, fizeram grande redução de nossa dívida e alongaram o prazo. Quisera eu que os credores estatais tivessem o mesmo comportamento que os privados. Valor: Depois de toda essa renegociação que foi feita, a informação é que vocês estão pagando em dia. Isso sacrificou o fluxo de caixa da Varig? Martins: Sem dúvida, principalmente o pagamento para o Paes (programa de parcelamento especial de dívidas com Fisco e INSS). Confessamos até dívida que tínhamos expectativa de ganhar contra o governo para poder aderir ao programa. Pagamos ao Paes US$ 7 milhões ao mês. Valor: Com tudo renegociado - dívida com governo em 18 anos e débitos privados também alongadas - mesmo assim os pagamentos não cabem no fluxo de caixa da companhia? Martins: Não, porque há uma concentração de pagamentos até 2007. Depois disso, estaria normal para o nosso faturamento.