Título: Onde a carne bovina brasileira não tem vez
Autor: Moreira , Assis
Fonte: Valor Econômico, 13/03/2008, Especial, p. A22

O presidente da Associação dos Produtores Rurais da Irlanda, Padraig Walshe, que lidera campanha contra a carne do Brasil: " Ataco a carne, mas gosto do futebol" O bife é enorme, com grossas camadas laterais de gordura, como nas picanhas. A primeira garfada confirma que a carne está no ponto ideal, é macia e suculenta. Acompanhada de batata e cenoura ralada, tem aparência mais do que robusta no prato de louça clássica britânica.

O almoço é na fazenda do influente presidente da Associação dos Produtores Rurais da Irlanda, Padraig Walshe, o homem que deflagrou na Europa a mais dura e virulenta campanha contra a carne bovina brasileira, com participação decisiva no embargo imposto pela União Européia (UE) contra o produto no bloco comunitário.

Agora que conseguiu esvaziar a concorrência, Walshe quer aproveitar para elevar em 20% a produção irlandesa em quatro anos - o que significa cerca de 100 mil toneladas a mais - e ampliar a fatia da carne bovina irlandesa no mercado europeu.

Ele aposta que o Brasil vai demorar para retomar o volume anterior de exportações para a UE. Acha que, se Bruxelas respeitar suas próprias regras, o país precisará de anos para comprovar que todas as suas fazendas de exportação respeitam um eficiente e seguro sistema de rastreamento da carne, desde o nascimento do bezerro até a mesa do consumidor.

A fazenda de Walshe fica em Durrow, a uma hora e meia de carro da capital Dublin. Tem 30 hectares, 120 cabeças de gado e produz 700 mil litros de leite por ano, além de contar com uma pequena produção de carne. Ele comanda a propriedade que herdou do pai com a ajuda da esposa Ella e, às vezes, da mãe Sheila, de 89 anos. Em 1991, recebeu o título de produtor de leite do ano.

Quando o repórter chega, Ella está preparando uma pilha de bifes no fogão ao lado da grande mesa da aconchegante "sala-cozinha". Walshe fala ao telefone no primeiro andar. Logo desce e retoma o ataque: "É mais fácil combater os brasileiros do que Peter Mandelson", afirma, referindo-se ao comissário europeu de Comércio, a quem acusa de querer reduzir em 70% as tarifas de importação de carne bovina "barata" de Brasil e Argentina, entre outros países, para fechar um acordo na Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Walshe oferece a cabeceira da mesa ao visitante, e apresenta o jovem Jerry - "que é quem cuida da fazenda quando não estou caçando carne brasileira", explica.

"O bife é aqui da região", diz um bem-humorado Walshe, sem fazer comparações com a carne brasileira. Diante dele está Kevin Kinsella, seu assessor e um dos autores do relatório sobre a carne brasileira que amplificou a pressão sobre a Comissão Européia para agir contra o produto, em julho de 2007.

Kinsella aproveita a deixa e lembra que, nas visitas a dezenas de fazendas no Brasil em 2006 e 2007, comeu muito churrasco com as pessoas com quem conversou. Mas provoca: "Não sei se era carne brasileira, porque não tem rastreamento lá, pode ter sido do Paraguai" - e ambos riem.

A Irlanda é um país que tem mais gado do que habitantes. A população é de 4,3 milhões de pessoas. As cabeças de gado chegam a 6,7 milhões, espalhadas por 130 mil fazendas - média de 52 animais por fazenda, quase uma gota d'água comparada a algumas regiões do Brasil, que conta com um rebanho bovino de quase 170 milhões de cabeças e onde há propriedades com até centenas de milhares delas.

A Irlanda exporta 90% da carne que produz, quase tudo para o mercado comunitário. É o quarto exportador mundial, atrás de Brasil, Estados Unidos e Austrália. No ano passado, as vendas externas do país renderam US$ 2,4 bilhões. As importações somaram apenas 31 mil toneladas.

A bronca contra o Brasil, portanto, não é por causa da entrada de carne na Irlanda, e sim pela perda de mercados externos. Com a redução de subsídios a exportação na Europa, os irlandeses não conseguem enfrentar a concorrência brasileira em países como Egito e Rússia, limitando-se a se concentrar na UE.

Segundo Walshe, a campanha decolou quando ele constatou que os pecuaristas irlandeses estavam recebendo preços menores do que há vinte anos por sua carne. "Os EUA têm o mesmo preço de US$ 3 por quilo e pagam tarifa para entrar na UE [apenas o produto sem hormônios], portanto não causam estragos à nossa produção", calcula. "Aí vimos que a carne do Brasil [onde o uso de hormônios é proibido] entrava na Irlanda e era vendida como carne irlandesa para hotéis e restaurantes, muito barata e sem o consumidor saber a origem".

Embora sempre com argumentos sanitários, Kinsella ilustra a motivação comercial dos irlandeses. Relata que em 2005, quando a UE embargou a carne originária de três Estados brasileiros (Mato Grosso, Paraná e São Paulo) pela eclosão de casos de febre aftosa, a Comissão Européia prometeu aos irlandeses que a importação de carne brasileira cairia em 60% - e que, assim, haveria espaço para a ampliação de suas exportações.

"Mas a entrada da carne brasileira na UE fez foi aumentar", reclama. "Fomos ao Brasil e comprovamos ausência de controle no movimento de animais por falta de brincos ou rastreamento, contrabando de animais entre Paraguai e Brasil etc". A estratégia da associação dos produtores da Irlanda foi fortalecer o ataque, apontando perigos da carne brasileira para consumo humano e forçando comparações com o que os irlandeses consideram seu melhor trunfo: seu sistema interno de rastreamento.

A entidade colocou todo seu peso na investida. Com 85 mil membros, é capaz de colocar todo dia nas ruas 2 mil voluntários em lobby direto junto a políticos, supermercados e organizações de consumidores. "Não somos ricos, mas somos bem organizados. Muito determinados e focados no que fazemos", avisa Kinsella.

No Ministério da Agricultura irlandês, dois técnicos concordam quando Kinsella diz que o sistema de rastreamento do país "é mais sofisticado para animais do que para seres humanos". Como lembram Sean Bric e Peter Maher, responsáveis pelo "Cattle Movement Monitoring System (CMMS)" do ministério, o sistema de controle dos animais no país começou em 1954, para controlar doenças.

Quando a UE decidiu pelo rastreamento obrigatório para garantir a segurança ao longo de toda a cadeia alimentar, depois da tragédia provocada pela doença da "vaca louca", a Irlanda apenas aperfeiçoou seu sistema: em 1996, registrou 2 milhões de animais; em 1997 a outra metade do rebanho; em 1998, implementou o controle de movimento dos animais entre as fazendas, em 1999, o controle de movimentos para os mercados de leilão, indústria processadora e pontos de exportação; e em 2000, finalmente, fez um novo censo do rebanho doméstico.

-------------------------------------------------------------------------------- Irlanda quer aproveitar as restrições impostas ao Brasil para estimular um aumento de 20% da produção doméstica --------------------------------------------------------------------------------

O técnico Peter Maher liga o computador e mostra como o sistema funciona na Irlanda. Cada fazenda está localizada num mapa. Ele aperta um botão e encontra a propriedade de Padraig Walshe. Dá para ver rapidamente que o líder dos produtores irlandeses tem uma vaca doente.

Com um zoom, a fazenda aparece no Estado em que se localiza, depois no município. Com outro clique, o mapa se transforma em foto satélite, mostrando que a residência fica ao lado de um restaurante na beira da estrada. Adjacente à propriedade há uma área florestal.

Os técnicos passam meia hora apenas para explicar a importância do "tagging", os dois brincos nos animais, que é a primeira etapa do rastreamento. O governo irlandês coordena tudo. Cada brinco custa ? 2 euros e traz impresso o número que acompanhará o animal pelo resto da vida. O distribuidor dos brincos aconselha o produtor a colocá-los entre as duas veias da orelha. Sean Bric faz uma demonstração de como o brinco fica seguro. "Não tem jeito de fraudar, e se o brinco foi perdido, o produtor vai ter de comprovar tudo, do contrário o sistema bloqueia o movimento do animal".

O custo anual das operações e manutenção do "Ireland's Bovine Animal Identification and Traceability System" é de ? 30 milhões de euros, segundo o Ministério da Agricultura. O valor cobre basicamente os custos com 878 funcionários que asseguram a aplicação do sistema de rastreamento, e não inclui as ajudas que os pecuaristas recebem para implementar o mecanismo.

A segunda etapa é o registro de nascimento, com detalhes como cor, raça, local de nascimento e se houve inseminação artificial ou não, entre outros. O produtor pode enviar o documento ao ministério por e-mail. Dez dias depois recebe o passaporte do animal e um grosso livro azul para anotar tudo - desde medicamentos até venda ou compra. Os dados precisam ser preservados por anos.

Na Irlanda, todos os anos 1,7 milhão de animais são negociados por meio de leilões e outros 800 mil entre fazendas. Para cada venda, é necessário o certificado de testes de tuberculose e brucelose. Se o resultado for negativo, todo o rebanho é isolado, testado de novo e nenhum negócio é autorizado antes de seis meses.

Além do controle do governo, os produtores dizem encarar a pressão da rotulagem de qualidade dos supermercados e outros compradores, que podem, por exemplo, exigir carne de animais novos ou que não tenham passado por mais de uma fazenda. "Está tudo computadorizado e online. A questão não é o número de animais que um país tem, mas como o sistema está implementado. Isso não se faz da noite para o dia, toma no mínimo cinco anos", diz Bric, com o assentimento dos outros.

Kinsella intervém e diz saber que o Brasil corre outro risco de ter problemas com suas exportações para a UE. Segundo ele, "os milhões de animais registrados no Sisbov [o sistema oficial brasileiro] são os mesmos de quatro anos atrás. Mas o que aconteceu com o gado exportado?".

Terminada a sobremesa (torta de maçã) e o chá, Padraig Walshe conduz o repórter ao escritório. Liga o computador e explica como faz o rastreamento. Mas seu programa parece sofisticado demais, a ponto de ele ter dificuldades para rastrear um novo bezerro que registrou há alguns dias. Quando enfim encontra o registro, diz que pode comprovar o rastro de gerações de animais.

Ele insiste em cobrar do Brasil equivalência com o que a UE faz. Pouco importa que princípios, mecanismos e objetivos já sejam similares. E ignora réplica da própria UE. Em documento enviado ao Parlamento Europeu em julho de 2007, o então comissário Markus Kyprianou contestou que o bloco tenha de exigir do Brasil sistema equivalente na identificação, registro ou rastreamento.

Pelo contrário, disse ele. É exatamente porque o sistema brasileiro tem diferenças em relação ao europeu que a UE exige que o país controle parte do sistema de produção, com condições adicionais para os animais cuja carne é exportada para o mercado comunitário.

"A Comissão estava acobertando o Brasil. Tivemos que ocupar por dois dias a sede da FVO para eles soltarem o relatório da missão que foi lá", retruca Kevin Kinsella. Ele insinua que "interesses econômicos suspeitos" em países como a Itália mantiveram a exportação brasileira para a UE.

Ao mostrar os galpões para seus animais, Padraig Walshe martela exigências européias que os brasileiros não tem, entre as quais o armazenamento de estrume no inverno, entre outubro e janeiro.

Ao mostrar a fazenda no volante de um trator, Walshe volta a disparar a artilharia contra a postura de Peter Mandelson, comissário europeu de Comércio, na OMC. Se Mandelson de fato aceitar reduzir em 70% a tarifa sobre a carne importada de Brasil, Argentina e outros para fechar a Rodada Doha, afirma, anulará os efeitos da campanha que liderou contra os brasileiros.

O cálculo é simples: as tarifas de importação hoje representam ? 3,70 euros por quilo. O corte de 70% baixa esse valor para ? 1,1 euros . Para os irlandeses, isso abriria o mercado europeu para a entrada de 2 milhões de toneladas de carne importada, do total de 8 milhões consumidas atualmente na UE. A importação européia hoje é de 500 mil toneladas. "Seria um desastre, somos os mais vulneráveis", diz Walshe. Para ele, o efeito da proposta de Mandelson em países como França e Itália é pequeno, já que são importadores líquidos de carne. Já a Irlanda tem que exportar quase toda a sua produção.

Peter Power, o porta-voz irlandês de Mandelson, atenua o temor do compatriota: "Visto o que estamos preparados para fazer na agricultura, e as dificuldades que isso representa para nossos Estados-membros, estamos muito frustrados de ver que nossos parceiros não estão preparados nem para chegar ao meio do caminho em termos de cortes industriais. Sem um esforço dos países em desenvolvimento, nunca estaremos em posição de vender um acordo de Doha na Europa", disse ao Valor.

Em todo caso, Padraig vê o britânico Mandelson como alguém que deseja desmantelar de vez a proteção agrícola européia. Ele alveja também os planos de Marian Fischer Boel, a comissária européia de Agricultura, de reduzir os subsídios agrícolas. "É Brasil, Mandelson, subsídios, temos de combater tudo isso", suspira. E, antes da despedida, ressalva: "Posso atacar a carne, mas gosto do futebol brasileiro". E ri.