Título: As pálidas impressões de uma uva caprichosa
Autor: Lucki , Jorge
Fonte: Valor Econômico, 18/03/2008, EU & Investimentos, p. D6

Degustação de 27 Pinot Noirs das mais diversas procedências, organizada no último fim de semana, com todas as garrafas provadas às cegas Para quem desavisadamente ouvisse as serenas explanações de Sylvain Pitiot - responsável desde 1995 por um dos mais cultuados grand crus tintos da Borgonha, o Clos de Tart - sobre a forma como ele conduz seus vinhos, pareceria muito lógico e até fácil atingir tão alto padrão de excelência: cuidado extremo com o vinhedo, rendimento baixo por parreira, rigor na triagem das uvas e uma vinificação clássica não intervencionista.

Aos poucos, com o aprofundamento das questões propostas pelo seleto grupo de privilegiados convidados à degustação na semana passada pela Cellar, importadora que representa a vinícola no Brasil, razões mais fortes foram surgindo. Entre elas a elevada idade média das vinhas, ao redor de 60 anos (algumas chegam a 100 anos), e a possibilidade de retardar a data da colheita até que os cachos atinjam graus de maturação próximos do ideal, atributo inexorável de um grande terroir.

Gil Silva / Valor O melhor vinho da degustação foi o Chambolle Musigny, típico borgonha, seguido pelo neozelandês Rippon. Os demais são opções honestas com Pinot Noir Agora tudo fica um pouco mais claro. Sabe-se da importância do terroir, do homem e da variedade da uva quando o tema é vinho, mas dificilmente a interdependência entre esses três fatores é tão clara e crucial quanto na Borgonha, em especial, nos seus tintos. Isso se deve à uva Pinot Noir que os compõe com exclusividade, considerada a mais sensível e caprichosa das castas tintas superiores, por refletir cruelmente as peculiaridades do local onde ela foi plantada e o trabalho do vinhateiro.

Ainda que na Borgonha haja um conjunto de condições naturais apropriadas ao seu cultivo, a fragmentação dos vinhedos que particularmente caracteriza a região é o fator que dificulta o processo de escolha do consumidor e o induz a erros freqüentes.

Fragmentação significa que uma parcela tem na sua grande maioria vários proprietários - o Romanée St Vivant tem 10, o Clos Vougeot tem 80 (!), só para citar dois grand crus famosos -, cada um com suas próprias parreiras. Nos seus domínios o produtor impõe sua filosofia e define seus objetivos com liberdade. Uns são zelosos e competentes, limitando o número de cachos por planta e trabalhando para extrair as melhores uvas para produzir o melhor vinho. Outros nem tanto. Assim, é possível se encontrar, dentro de um mesmo vinhedo, vinhos ótimos, médios e ruins.

Saber quem produziu o vinho é, pois, fundamental na escolha de um borgonha. Não é arriscado concluir que é mais importante guardar o nome do produtor do que o do vinho ou do vinhedo. No citado Clos de Tart, não há risco. Só há um: ele faz parte de uma minoria, em que a parcela que lhe confere nome tem apenas um único proprietário.

A Pinot Noir vem tendo crescente projeção nos últimos anos, em particular a partir do final de 2004, quando do lançamento de Sideways, filme americano que ressalta as virtudes dos vinhos com ela elaborados, em detrimento de outras variedades hoje muito utilizadas mundo afora, com foco especial na Merlot. Num mercado tão influenciável como o dos Estados Unidos, tal menção fez com que a busca por Pinot Noir explodisse - 30% já de imediato - sem que houvesse produção de vinho suficiente para atender a demanda.

Vários países já vinham tentando " domar " a caprichosa Pinot Noir, em sua quase totalidade sem grande sucesso. A eles se juntaram produtores das mais variadas procedências, que, às pressas, implantaram novos vinhedos para não perder o bonde que estava passando. " É inapelável, não existe Pinot Noir fora da Borgonha " , disse certa vez a competente e geniosa Lalou-Bise Leroy, que dirige uma das mais respeitadas casas borgonhesas.

Com efeito, longe de seu habitat original, a casta perde as características principais que a distingue de todas as outras variedades: elegância e sofisticação, resultado de perfeito equilíbrio entre taninos finos, macios, e bom frescor, sem que isso se configure como falta de corpo. Aliás, é até certo ponto freqüente associar vinho encorpado com tânico ou volumoso em boca. No caso, confunde-se estrutura e peso (que bons borgonhas têm), com vinhos impactantes (que tanino e volume provocam).

A propósito, é significativo notar que os Pinots Noirs plantados nos Estados Unidos obtêm altas pontuações do influente crítico Robert Parker. Ao contrário do que se poderia supor isso não se deve à extrema competência dos produtores americanos que assim teriam conseguido conciliar todas as virtudes da Borgonha com a força e concentração que agradam Parker. Na realidade, os vinhos com ela ali produzidos, em geral perdem a elegância e seu caráter sedutor, ficando apenas com o lado musculoso.

O grande diferencial do Pinot Noir da Borgonha é realmente sua afinidade com o terroir local, elemento intransferível e " irrepetitível " . Além da questão dos solos, onde predomina uma rocha calcária, pesa também a questão climática, com alternância de noites frias e temperaturas não elevadas durante o dia, o que enseja um período de maturação suficientemente longo para que se atinja taninos maduros e finos, mantendo desejável e imprescindível nível de acidez para garantir frescor ao vinho.

Regra geral, nos " borgonhas " mundo afora as uvas são colhidos mais tarde, sendo assim mais alcoólicos e apresentando um padrão marcado por fruta muito madura, quase adocicado, conseqüência de um grau de acidez insuficiente para contrabalançar. A exceção tem sido a Nova Zelândia, em particular as regiões de Martinborough, ao sul da ilha norte, e Central Otago, no canto meridional da ilha sul. O clima adequadamente frio de ambas (o que não acontece com Marlborough, mais apropriado à Sauvignon Blanc) favorece a maturação e a preservação do frescor. Ainda que guardem diferenças em relação aos da Borgonha -solo, clones das videiras e peculiaridades do terroir - são os que mais se assemelham aos originais.

O reconhecimento tem acelerado bastante a implantação de novos vinhedos na Nova Zelândia - a área plantada subiu de 830 hectares em 1998 para cerca de 4000 hectares no ano passado. Particularmente em Central Otago, hoje a zona mais prestigiada do país em termos de Pinot Noir, há 700 hectares. O pioneiro nessa região afastada do mar e rodeada de montanhas com picos nevados é Rolfe Lois Mills, fundador da Rippon, cujos vinhedos ao lado do lago Wanaka são tidos como um dos mais bonitos do planeta.

Se todas essas teorias ainda precisassem de comprovação, elas vieram com a degustação de 27 Pinot Noirs das mais diversas procedências, que reuni no último fim de semana, com todas as garrafas provadas às cegas. O painel foi dividido em três séries, seguindo um critério básico: na primeira, dois borgonhas clássicos tiveram maioria de neozelandeses como companhia; na segunda, dois borgonhas de nível médio, dois italianos, um da Nova Zelândia mais simples e um nacional, de Santa Catarina; por último, fundamentalmente chilenos e argentinos. A seguir os comentários:

O melhor vinhos da degustação foi o Chambolle Musigny " Fremières " 2005, de Michel Magnien, um Borgonha típico, bem elaborado e característico, um bom parâmetro do que é um Pinot Noir com taninos finos, boa textura e noção de fruta fresca (Cellar, R$160). A seguir, empatado com outro bom Borgonha, o Vosne Romanée 2004, de Jacques Cacheux (Decanter, R$ 224,20), veio, sem surpresa, o Rippon 2003 (o 2004, provado em outra situação é ainda melhor), de Central Otago (Premium, R$ 166). Em quarto lugar nesta série, outro vinho de Cantral Otago, o Felton Road 2005 (Mistral, US$ 82,90).

Cabe observar, ainda na primeira bateria, o mau resultado obtido pelo Ata Rangi, da região de Martinborough, normalmente um dos Pinot Noirs mais citados como exemplo do que a Nova Zelândia obtém com essa uva. Ao contrário do que normalmente se supõe - tratar-se de um problema particular da garrafa degustada -, a explicação está na safra 2002, pouco feliz naquela zona. Vale provar a 2004 (Premium, R$220,00), que teria sido um dos pontos altos do painel.

Na segunda série algumas constatações positivas e outras negativas. O lado bom ficou com um outro neozelandês, o Pencarrow 2006 (Premium, R$84,00), vinho da gama média da Palliser, uma vinícola de primeira linha no país, também de Martinborough. Sem sair fora da proposta de ser um Pinot mais fácil e acessível, é bem elaborado, mantendo-se fiel ao caráter da variedade. Isso, por outro lado, não ocorreu com os dois italianos, o Alois Lageder 2004, do Alto Adige (Mistral, US$39,90), com taninos imaturos, vegetais, e o Castello della Sala 2002 (Expand, R$178,00), que a conceituada casa Antinori tem na Umbria e de onde saem bons Sauvignons e Chardonnays. Tudo indica, todavia, que Pinot Noir não é seu lado forte. Sem tipicidade e com taninos adstringentes, está longe do que se poderia esperar dela. Deixaram a desejar, igualmente os dois borgonhas - comprova a tese, acima citada, que ali o fator humano é fundamental -, o Bourgogne 2005, de Antonin Guyon-Domaine de la Guyonnière (Decanter, R$92,70) e, o decepcionante Macon les Epillets 2005, da Cave Cooperativa de Lugny. Não vale como justificativa, mas a garrafa foi comprada por R$49,90 na promoção da Expand do início do ano.

O terceiro flight reuniu o que se poderia considerar a nata dos Pinots chilenos e argentinos disponíveis no Brasil. Dois vinhos tiveram boa avaliação, ainda que por razões diferentes: o Amayna 2005 (Mistral, US$49,90), da região de Leyda, refletindo um bom Pinot Noir com estilo Novo Mundo, e o Chacra Treinta y Dos 2005 (Grand Cru, R$390,00), um belo tinto da província de Rio Negro, com taninos finos, mas sem tipicidade da casta. Uma explicação para essa falta de caráter varietal, valendo também como curuiosidade, é o fato deste vinho provir de velhos vinhedos plantados em 1932, onde não se conhece a proveniência dos clones. Boa noção do potencial do Valle do Limari, zona fria recém explorada do norte do Chile, é o Tabali Reserva Especial 2006 (Grand Cru, R$69,00), equilibrado e com bom frescor. Desapontou, ou, para mim apenas confirmou impressões anteriores, o Ócio 2005 (Wine Premium, R$348,00), vinho ultra premium da Cono Sur. É demasiado potente, e pouco representativo do que se pretende de um Pinot Noir.