Título: O direito de ir à praia
Autor: Loureiro , Antonio
Fonte: Valor Econômico, 17/03/2008, Opinião, p. A14

Chamou pouca atenção do público em geral um interessante diálogo travado nas páginas do Valor em princípios deste ano. O referido diálogo teve como protagonistas o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, e o presidente do Senado, senador Garibaldi Alves (PMDB-RN). O pano de fundo da discussão foram as medidas tomadas pelo governo para compensar a perda de arrecadação da CPMF.

Ao comentar sobre as queixas da oposição, que se sentiu traída com o anúncio das medidas fiscais, o ministro afirmou: "Está dentro do marco democrático eles (a oposição) criarem dificuldades, anunciarem que vão atrapalhar e votar contra o governo. Eles fazem isso e nós temos que fazer a outra parte, que é manter o equilíbrio do orçamento, o superávit fiscal, tranqüilizar o país. Não pode é ter inversão de papéis. Não pode é a oposição querer governar o país, principalmente, lá da praia" (Valor , 04/01/08).

A "praia" a qual o ministro se refere diz respeito, evidentemente, ao recesso parlamentar de fim de ano. A oposição, descontente com as medidas do governo, pediu convocação da Comissão Representativa do Congresso Nacional, em meio ao recesso, para solicitar esclarecimentos do ministro da Fazenda, Guido Mantega, e também para deliberar sobre um projeto de decreto legislativo para derrubar as medidas. O presidente do Senado optou por não reunir a comissão e esperar para debater as questões em fevereiro, afirmando: "Para esse assunto não há urgência. Não há nenhuma medida exorbitante. O que há, realmente, é a possibilidade de um debate muito mais aprofundado, muito mais consistente de que no restante desse recesso", justificou Garibaldi, acrescentando que os parlamentares também têm direito a férias na praia. "Todo mundo tem direito a ir à praia. Menos os senadores?", questionou (Valor , 09/01/08).

O diálogo revela um quadro, no mínimo, peculiar: enquanto parlamentares de diversos partidos da oposição clamavam por ação contra as medidas do governo, o Congresso se encontrava literalmente fora de serviço, inviabilizando qualquer discussão mais abrangente. Não é meu objetivo entrar no mérito ou demérito das medidas propostas pelo governo. Desejo, de fato, abordar um assunto mais elementar, mas não menos importante. Os parlamentares têm, por suposto, o direito de ir à praia, como todo mundo. Ocorre que os parlamentares, diferentemente de todo mundo, têm 54 dias de férias no ano: o recesso parlamentar, que vai de 18 a 31 de julho, e de 23 de dezembro a 1º de fevereiro.

-------------------------------------------------------------------------------- Os parlamentares têm o direito de ir à praia como todo mundo, mas diferentemente de todos, eles têm 54 dias de férias --------------------------------------------------------------------------------

A situação atual, na realidade, representa uma evolução: até 2006, o recesso era de três meses. O trabalhador, por sua vez, goza de trinta dias de férias no ano, isso quando tem carteira assinada. Diante da pressão popular, na esteira dos escândalos do mensalão, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional nº 50, em fevereiro de 2006, reduzindo o recesso para os atuais 54 dias e abolindo o pagamento de remuneração indenizatória para convocação extraordinária durante o recesso.

De fato, o processo que culminou na EC nº 50 já começara algum tempo antes. Em seu primeiro dia como líder do PT na Câmara, o deputado Arlindo Chinaglia abordou os temas que viriam a tomar corpo na referida Emenda. A idéia era reduzir o período de férias do Legislativo (além do Judiciário e do Ministério Público) com base no princípio de que todo trabalhador deve ter 30 dias de férias por ano ("Jornal do Brasil", 02/02/2004). Os trinta dias de férias por ano são definidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), e nada mais natural que o Partido dos Trabalhadores tivesse como agenda estender a validade do dispositivo a todos, sem distinção.

Um ministro do Poder Executivo usufrui trinta dias de férias no ano. Suas responsabilidades são, no mínimo, tão grandes quanto as de um parlamentar, e sua rotina também é, pelo menos, tão desgastante quanto - e aqui vale lembrar que o Congresso realiza votações somente entre as terças e quintas-feiras. O deputado Arlindo Chinaglia, já presidente da Câmara, procurou mudar esta prática ao tentar instaurar sessões deliberativas também às segundas-feiras sem, contudo, obter sucesso, por falta de quórum. Líderes de diversos partidos pressionaram para transferir a sessão de segunda à noite para terça pela manhã, sob a justificativa de que perderiam contato com as cidades que representam ("Correio Braziliense", 11/04/2007). Cabe observar que a prática de não realizar sessões nas segundas e sextas-feiras inexiste nos EUA, outra democracia de dimensões continentais.

A Magistratura, por sua vez, dispõe de 60 dias de férias mais 20 dias de recesso no fim do ano. Walter Nunes, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil, diz achar "razoável os 60 dias de férias. A carga de trabalho do juiz é desumana e a missão de julgar é algo que desgasta emocionalmente", acrescenta. "Por mais difícil que seja para a sociedade entender, as férias dos juízes se justificam." Cabe acrescentar que o Judiciário comemora sete feriados próprios e, como regra geral, emenda os feriados nacionais - prática também comum no Legislativo ("Consultor Jurídico", 01 e 09/11/2006).

Acreditamos que os postos chave do Estado devem dispor das melhores condições de trabalho. Nem sempre, contudo, estas condições parecer conspirar pelo interesse público. Não se trata apenas do fato de que férias e feriados acima do que determina a legislação para o setor privado constituem um flagrante privilégio diante da sociedade, diante do trabalhador "comum" que paga impostos. Com base em que argumentos o Legislativo (além do Judiciário e do Ministério Público) pode justificar, racionalmente, a necessidade de tanto tempo de descanso no ano? Como se não houvesse assuntos relevantes ou urgentes a serem tratados. Uma agenda republicana de reforma do Estado não deve deixar de lado estas questões.