Título: Evolução da crise põe Fazenda e Banco Central em lados opostos
Autor: Ribeiro , Alex
Fonte: Valor Econômico, 20/03/2008, Finanças, p. C1

O agravamento da crise internacional nos últimos dias expõe as divergências entre o Banco Central e o Ministério da Fazenda sobre a condução da política monetária. Na visão da Fazenda, os juros não deveriam subir em um período em que aumentam as incertezas sobre a extensão da crise americana. Já o BC considera que os efeitos de uma eventual queda mais acentuada da economia americana são ambíguos e não necessariamente eliminam os riscos de aceleração da inflação.

Mesmo antes da piora da crise, a visão da Fazenda era de que o BC não deveria adotar uma política monetária mais restritiva, já que as pressões inflacionárias ocorridas desde dezembro seriam decorrentes única e exclusivamente de choques de oferta - principalmente a alta dos preços internacionais dos alimentos. O período mais negativo, na visão da Fazenda, teria sido em dezembro e, desde então, a inflação dá sinais de maior acomodação.

Para o BC, mesmo antes do agravamento da crise americana a alta de juros era uma hipótese a ser contemplada, porque a inflação não se deve apenas a choques de oferta, mas também ao maior aquecimento da economia - que tem dois tipos de repercussão. Uma é permitir que os choques de oferta em produtos com grande visibilidade para a população, como alimentos e energia, se propagarem para os preços de outros produtos. Outro problema é que o consumo e o investimento crescem acima da capacidade produtiva da economia, provocando a chamada inflação de demanda. O quadro geral, para o BC, ainda é favorável, tanto que as projeções feitas por seus modelos ainda apontam a inflação consistente com as metas. Mas os riscos aumentaram, o que levou o BC a cogitar uma alta na taxa básica na sua reunião deste mês, embora a decisão final tenha sido pela manutenção da Selic em 11,25% ao ano.

A crise internacional é vista como uma incógnita a mais em um quadro já bastante incerto. O cenário básico com o qual a autoridade monetária trabalha é de uma desaceleração, queda ou estagnação nos Estados Unidos, mas com impactos moderados sobre o crescimento do resto do mundo. Como a maior parte dos analistas econômicos, o BC não compra a hipótese de que haverá um descolamento pleno dos países emergentes em relação às economias desenvolvidas. Mas atribui uma possibilidade grande de que, embora afetados, os emergentes continuem a crescer - sustentando a cotação de "commodities" exportadas pelo país e mantendo o fluxo de capitais para o Brasil.

Na Fazenda, esse também é visto como o cenário mais provável. E causaria um bom problema. Preços mais altos de "commodities" favoreceriam a balança comercial e melhorariam ainda mais a percepção de risco Brasil, aumentando inclusive as chances de o país ser elevado a "grau de investimento" pelas agências de classificação de risco. Paralelamente, os cortes na taxa básica dos Estados Unidos ampliariam o diferencial de juros, tornando o país ainda mais atrativo para os capitais especulativos. Tudo considerado, a taxa de câmbio se valorizaria, baixando a inflação sem que o BC no Brasil seja obrigado a subir a taxa de juros.

O acirramento da crise nos últimos dias, porém, leva o BC a atribuir um peso cada vez maior ao seu cenário alternativo - em que uma queda da economia americana tenha impactos devastadores sobre o resto do mundo. O BC avalia que a economia brasileira está mais sólida e que a melhora dos indicadores de sustentabilidade externa, como o aumento das reservas internacionais e redução da dívida externa, são uma proteção importante. Mas não nos deixariam imunes a uma crise mundial.

O contágio, na visão do BC, ocorreria em duas frentes. Uma delas seria a desaceleração da economia mundial, incluindo China e Índia, reduzindo os preços das "commodities" exportadas pelo Brasil. O resultado sobre a inflação, porém, seria ambíguo. O saldo do comércio exterior diminuiria e, provavelmente, haveria alguma depreciação do câmbio, pressionando a inflação. Mas, por outro lado, a queda dos preços das "commodities" seria um choque de oferta positivo, diminuindo pressões inflacionárias. O menor crescimento mundial também reduziria a demanda externa, representada pelas exportações, suavizando uma importante fonte de pressão no campo inflacionário.

Outra frente de contágio da crise internacional, na visão do BC, seria no fluxo de capitais. Boa parte do crescimento do mercado de capitais brasileiro está ocorrendo em empresas que produzem "commodities", que se tornariam menos atrativas para os investidores estrangeiros caso haja uma queda mais forte nas cotações desses produtos. A desaceleração abrupta da economia mundial também aumentaria a aversão a risco, reduzindo o fluxo de capitais ao país. Juntos, esses dois fatores levariam a uma taxa de câmbio mais depreciada, pressionando a inflação.

A Fazenda também trabalha com um cenário alternativo em que a crise americana arrasta o resto do mundo. As exportações brasileiras encolheriam, mas as importações continuariam com certo vigor, puxada pela demanda doméstica aquecida. Nessa hipótese, o saldo comercial seria duramente afetado, e poderia haver uma desvalorização cambial entre 10% e 15%, pressionando a inflação. Mas seria uma alta transitória no índice de preços, dentro da margem de tolerância do regime de metas de inflação, e o BC não precisaria elevar o juro.

A Fazenda trabalha ainda com um terceiro cenário, de neutralidade, em que as condições da economia mundial não mudam em relação às atuais, o saldo comercial fica dentro do previsto pelo mercado financeiro e o dólar não sai do lugar. Nessa hipótese, continua em pé a avaliação de que o BC não deveria elevar os juros porque a inflação é apenas decorrente de choques transitórios de oferta, não de demanda.

Apesar dos diagnósticos diferentes, BC e Fazenda têm um ponto comum: a evolução dos preços das "commodities" será um indicador central para apontar a extensão da crise e o quanto vai atingir o Brasil.

Os sinais emitidos pelas "commodities", porém, não são muito claros. No início deste ano, os preços subiram muito, tanto porque se acredita que os países emergentes terão algum grau de descolamento em relação aos países desenvolvidos e porque investidores apostaram nesses ativos para se defender e lucrar num ambiente em que o dólar se enfraquece e acontecem pressões inflacionárias nos Estados Unidos. Ontem, o movimento foi o inverso - as "commodities" devolveram parte do seu ganho.