Título: EUA buscam culpados pela crise
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Fonte: Valor Econômico, 20/03/2008, Finanças, p. C14

Enquanto o mercado imobiliário não pára de cair e o sistema financeiro debate-se para ficar em pé, a pergunta do dia nos Estados Unidos é: de quem é a culpa?

Em ano de eleição, o debate logo ganha ares políticos. O Partido Democrata corre para pôr a culpa nos republicanos, que estavam no poder enquanto a bolha imobiliária inflava e o crédito imobiliário de alto risco corria solto. Durante muitos anos, os líderes americanos não conseguiram pôr freios no mercado, nas empresas, nos investidores nem nos consumidores para evitar os erros que levaram à crise financeira mais contagiosa das últimas décadas.

Mas, em retrospecto, a falha se alastra pelo governo e transpõe as linhas partidárias. No fundo estão duas fortes correntes. Desde o presidente republicano até os congressistas democratas, todos viam a aquisição da casa própria como o mais importante e inquestionável dos objetivos. E várias tentativas importantes de regulamentação foram obstruídas pela crença predominante de que a economia funcionava melhor quando o mercado financeiro operava o mais livremente possível.

O governo de George W. Bush se juntou aos que incentivavam a compra da casa própria e pressionou os agentes hipotecários Fannie Mae e Freddie Mac, ligados ao governo, a prover crédito para financiamentos de risco. Tanto democratas quanto republicanos apoiaram quando as duas agências investiram pesadamente em títulos garantidos por hipotecas "subprime", ou de alto risco. Congressistas democratas quiseram criar uma lei federal para limitar empréstimos, mas os republicanos, com apoio de alguns democratas, bloquearam ou propuseram versões mais brandas.

E no Federal Reserve, o ex-presidente Alan Greenspan, reverenciado pelos dois partidos pela maneira como administrou a economia, resistiu a usar a autoridade do banco para controlar de forma mais rígida a concessão de empréstimos.

A culpa vai de Washington às capitais estaduais. Legisladores democratas da Califórnia, que têm o maior número de credores de alto risco, não apoiaram leis que imporiam normas mais severas à indústria. Políticos de direita e esquerda aplaudiram os juros mais baixos que deram a partida no boom imobiliário e no excesso de crédito. A tendência, agora, parece ser a de o governo retomar um papel mais forte na economia americana. Congressistas democratas propuseram uma garantia federal de até US$ 400 bilhões para hipotecas problemáticas se, primeiro, os credores derem baixa contábil delas. A Casa Branca, que é contra o uso de dinheiro público para socorrer credores e devedores, está dando sinais de estar aberta a negociações.

Não dá para saber se uma regulamentação financeira e imobiliária diferente teria trazido um outro resultado. Como na bolha do mercado acionário dos anos 90, também agora muitas vítimas começaram como participantes seduzidos pela alta do preço dos imóveis e pelo crédito fácil.

Uma coisa é certa. O país se empanturrou com a compra de imóveis residenciais, uma coisa que já foi vista como tão americana quanto torta de maçã. "Vamos ser honestos", comentou em dezembro Richard Syron, diretor-presidente do Freddie Mac e ex-integrante do Departamento do Tesouro e do Federal Reserve, ambos no governo do presidente democrata Jimmy Carter. "Nós endoidamos com as metas, como país (...) dizendo: 'Todo mundo tem que ter uma casa'."

Desde a Guerra Civil, em meados do século XIX, ter uma casa é algo associado a virtude cívica e comportamento moral. Tanto governos democratas quanto republicanos buscaram aumentar o número de proprietários da casa própria por meio de subsídios, isenção de impostos e agências especiais.

Quando Bush assumiu, em 2001, esse apoio tornou-se uma das bases da sua campanha por uma "sociedade proprietária". "Queremos que todos os americanos tenham a própria casa", disse Bush numa conferência sobre habitação realizada na Casa Branca em outubro de 2002. No início daquele ano, ele lançou um desafio a credores e outros setores da indústria: criar até o fim da década 5,5 milhões de proprietários nas faixas sociais minoritárias. Em 2003, ele assinou lei que criava um programa para oferecer dinheiro a pessoas pobres, dessa forma garantindo que essas pessoas conseguissem sua primeira hipoteca.

Esses desafios ocorreram bem quando o setor de crédito descobria que empréstimos de alto risco podiam ser muito lucrativos, pelo menos a curto prazo. O estímulo do governo também fortaleceu a argumentação da indústria de que tais empréstimos - concedidos a gente com histórico de créditos no mínimo fraco - atendiam a uma necessidade social.

A casa própria é "nossa missão", disse num discurso em fevereiro de 2003 Angelo Mozilo, diretor-presidente da Countrywide Financial Corp., um gigante do crédito imobiliário. Mozilo citou Bush para dizer que os credores precisavam trazer o índice de proprietários das minorias americanas mais próximo do de brancos. Uma forma, disse ele, era parar de exigir entrada muito alta para quem não podia pagá-la.

Logo em seguida a Countrywide e outros agentes financeiros começaram a promover a concessão de empréstimos em que os mutuários precisavam de pouco ou nenhum dinheiro de entrada. O porcentual de tomadores que não comprovavam completamente sua renda e patrimônio passou de 17% no começo de 2000 para 44% em 2006, segundo dados da firma de pesquisa First American CoriLogic, de São Francisco.

Companhias ligadas ao governo que compram e garantem financiamentos imobiliários também entraram na dança. Em 2002, o governo começou a criticar a Freddie Mac e a Fannie Mae, dizendo que elas estavam "para trás" no mercado hipotecário em termos de financiamento de casas para pessoas de baixa renda e de grupos minoritários.

A fim de pressionar a Freddie e a Fannie, o Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano (HUD na sigla em inglês) acabou exigindo que um porcentual maior dos empréstimos financiados por elas fosse feito para mutuários de baixa renda. A Freddie Mac e a Fannie Mae conseguiram atender às exigências que lhes foram impostas em parte por comprar porções de títulos hipotecários de classificação "AAA" criados por firmas de Wall Street e garantidos por empréstimos de alto risco. Depois do período inicial de prestações baixas, muitos daqueles empréstimos se tornaram insuportáveis para os mutuários e agora estão indo para execução judicial.

A proporção de americanos que moram em casa própria aumentou de 65% no começo de 1996 para um recorde de 69% em 2004, mas já baixou para 68% e é quase certo que diminua mais com o aumento das execuções judiciais e com as recentes restrições de crédito. A Moody's Economy.com prevê que 3 milhões de financiamentos imobiliários ficarão em atraso no período de 30 meses até meados de 2009.

A HUD informa que a fatia de proprietários entre as minorias aumentou para cerca de 3,1 milhões desde meados de 2002 - mais de 2 milhões a menos do que a meta de Bush. O governo "se orgulha" de ter estimulado a compra de imóveis residenciais por mais americanos das classes minoritárias e de nunca ter favorecido empréstimos imprudentes, diz Tony Fratto, um porta-voz da Casa Branca.

Desde que o "subprime" decolou, em meados dos anos 90, legisladores e regulamentadores tentaram equilibrar dois objetivos conflitantes: aumentar o acesso ao crédito para famílias de baixa renda e minimizar a possibilidade de abuso dos credores. Com o aumento do preço dos imóveis, restrições mais firmes normalmente deram lugar a uma atitude "laissez-faire" afinada com os governantes republicanos. Resultado: o Congresso bloqueou a legislação sobre esses empréstimos e o Fed foi lento para regulamentá-los.

Em 1999, inspirados por uma inovadora lei contra créditos predatórios baixada na Carolina do Norte, os democratas quiseram criar uma equivalente no nível federal. Empréstimos predatórios são descritos geralmente como aqueles que envolvem muitas taxas e juros altos. Esses abusos ocorrem em geral no mercado de créditos "subprime", aqueles feitos para quem tem crédito fraco ou dívida alta em relação a sua renda. Os republicanos, que controlavam o Congresso, bloquearam a legislação com o argumento de que ela iria interferir com empréstimos legítimos.

"Não se desculpe quando você faz um empréstimo acima da taxa preferencial de juros a alguém que tem uma classificação marginal de crédito", disse Phil Gramm, senador republicano pelo Texas e então presidente do comitê sobre bancos no Senado, falando a um grupo de banqueiros em 2000. "Em nome do crédito predatório, vamos acabar negando a chance de pessoas com renda moderada e classificação limitada de crédito tomarem dinheiro emprestado."

De 2000 em diante, os democratas continuaram apresentando projetos de lei para evitar o crédito predatório. Em 2005, o republicano Brad Miller, da Carolina do Norte, e mais dois democratas apresentaram um projeto desses. O republicano Spencer Bachus, presidente de um comitê sobre empréstimo imobiliário na Câmara dos Deputados, se interessou em copatrocinar o projeto.

No primeiro semestre de 2006, de repente Bachus endureceu sua posição e na verdade acabou com as negociações, diz Miller. Barney Frank, democrata que também assinava o projeto, diz que, embora Bachus cooperasse com eles, a liderança republicana na Câmara não queria que tal projeto fosse apresentado para votação.

Bachus nega que sua liderança tenha interferido naqueles esforços, acrescentando: "Eu estava muito preocupado com a situação do 'subprime'." Ele diz que os democratas é que endureceram as negociações. Bachus salienta que muitas de suas provisões estão contidas num projeto que os deputados aprovaram no ano passado.

Mesmo sem intervenção parlamentar, as autoridades tinham outras ferramentas para lidar com o potencial abuso. Mas Greenspan, o presidente do Fed até 2006, queria ser comedido em seu uso.

Em 2000, ele rejeitou uma proposta informal do então diretor do Fed Edward Gramlich de que funcionários do banco central examinassem práticas de concessão de crédito não apenas dos bancos, mas de suas filiadas hipotecárias. Em 2002, ele rejeitou propostas dos democratas para que usasse o poder do Fed sob a Lei de Comércio Federal para baixar regras sobre práticas injustas e enganadoras.

Greenspan disse, em entrevista ao Wall Street Journal, que examinar as filiadas de hipoteca não impediria a fraude e daria às operadoras suspeitas a cobertura adicional de poderem alegar serem regulamentadas pelo Fed. Quanto às propostas dos democratas, disse que ele e outros diretores do Fed estavam seguindo o conselho da equipe profissional do Fed. De maneira geral, disse, o Congresso, e não o Fed, estava em melhores condições de definir práticas "injustas e enganadoras" e criar legislação para cuidar desses empréstimos.

Ele disse que errou ao pensar que outros investidores e participantes do mercado monitorariam adequadamente os critérios de concessão de crédito no mercado de títulos lastreados por hipotecas. "Acabei estando errado, para minha surpresa e desolação", disse.

O ambiente permissivo do país ganhou força na Califórnia, onde o crédito "subprime" disparou ao mesmo tempo em que os preços das casas subiam mais que as rendas. Ali, as falhas de regulamentação atravessaram as linhas partidárias. Legisladores republicanos se opunham de maneira geral a projetos de lei contra o crédito predatório. E os democratas, que controlavam o legislativo estadual, não queriam ameaçar um dos setores de melhor desempenho no Estado.