Título: A simplificação do sistema tributário
Autor: Lunardelli , Pedro G. Accorsi
Fonte: Valor Econômico, 24/03/2008, Legislação & Tributos, p. E2

Chega ao Congresso Nacional mais um projeto de reforma tributária em cuja exposição de motivos verifica-se o alentado desejo de promover a simplificação do sistema tributário atual. A pergunta que se põe é se isto será conseguido. Não me filio aos pessimistas, mas sim àqueles que conhecem bem a distância que há entre a intenção do projeto e a prática experimentada após a instituição de novas regras tributárias. Basta relembrarmos o cenário nacional antes e depois da instituição do regime não-cumulativo das contribuições ao PIS e à Cofins. Que saudades do Finsocial e da cumulatividade destas contribuições. Tudo era bem mais simples e, além disto, mais seguro.

Qual a razão, então, para a insatisfação publicada na imprensa? Os motivos são vários, mas um deles está ligado à imprecisão com que são tratadas as leis tributárias, característica esta fartamente presente no projeto. Vejamos alguns exemplos. A exposição de motivos refere-se ao imposto sobre valor adicionado. Porém, o texto cria o imposto sobre operações com bens e prestações de serviços e define esta como "toda e qualquer operação que não constitua circulação ou transmissão de bens".

Aqui, teremos dois problemas pela frente. O primeiro é o de conceituar operações, tarefa que poderá até ser mais facilmente realizada se imaginarmos que há alguns parâmetros na própria legislação tributária que poderão ajudar. Mas o que dizer da definição de prestação de serviços, qualificada como uma operação que não envolva a circulação ou a transmissão de bens? Se tomarmos como baliza estes parâmetros, veremos que, se houve confusão entre prestação e operação, ela foi devidamente solucionada pela doutrina e jurisprudência que demarcaram os limites de incidência daqueles tributos instituídos pela Emenda Constitucional nº 18, de 1965, e que visavam tributar o comércio exterior, a renda e o patrimônio e a produção e circulação. A solução dada foi qualificar as prestações como obrigações de fazer e as operações como obrigações de dar, seguindo, assim, a doutrina clássica civilista.

Pretende-se agora romper com esta tradição e instituir tributo sobre prestação de serviço que é definida como operação. Além disto, a prestação não é toda e qualquer operação, porque senão teríamos um tributo com incidência única, mas sim operação que não constitua circulação ou transmissão de bens.

A dúvida, portanto, é a de saber se será ou não mantida a classificação constitucional sedimentada pela experiência doutrinária e jurisprudencial vivida pelo país desde a edição da Emenda Constitucional nº 18. Em outras palavras, se prestação de serviços deverá ou não ser entendida como uma típica obrigação de fazer ou se passará a ser tratada como obrigação de dar. Mas, se for enquadrada dentro deste novo conceito - de obrigação de dar - qual será a incidência da prestação de serviços sujeita ao Imposto sobre Valor Adicionado (IVA)? Que distinção adotaremos para separar o IVA do Imposto Sobre Serviços (ISS), cuja competência tributária foi mantida para os municípios? Aí está o típico exemplo de imprecisão legislativa que resultará, certamente, em embates entre fisco e contribuintes, eliminando a pretensa simplificação mencionada na reforma.

-------------------------------------------------------------------------------- A pragmática brasileira mostra a distância entre o discurso que embasa o projeto e a realidade dos contribuintes --------------------------------------------------------------------------------

O projeto prevê ainda que o IVA se sujeitará à não-cumulatividade, definida em lei ordinária. A história recente explica, muito bem, o risco deste tipo de previsão. A Emenda Constitucional nº 42, de 2003, impôs regra semelhante para o PIS e a Cofins. Isto resultou, em menos de cinco anos, em um emaranhado de cerca de dez leis, além de infindáveis atos regulamentares que tornaram impraticável o entendimento sistemático deste regime de tributação. Alie-se a isto, a incompetência do governo para, no mínimo, propor um regulamento para consolidar este assunto, violando os artigos 13 e 14 da Lei Complementar nº 95, de 1998.

O argumento do governo para tratar isto no âmbito de lei ordinária é o de que a Constituição Federal não seria o local adequado para tanto. Deveríamos, então, seguir o modelo dos países desenvolvidos e não constitucionalizar qualquer tipo de assunto. Esquece-se, porém, que este fenômeno é conseqüência da mutabilidade desenfreada das leis, cujas alterações, muitas vezes, ocorrem apenas para aumentar a arrecadação e sem o amparo da Constituição. Relembremos que, desde a Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decretou um vultosíssimo número de invalidades da legislação tributária federal.

Para restringir este problema, os temas que, em um ambiente legislativo normal, até poderiam ser tratados em lei ordinária, devem ser alocados no nível constitucional, pois assim tem-se uma garantia a mais, que é a maior dificuldade para se alterar Constituição Federal.

Não temos dúvida de que o modelo a ser perseguido deve mesmo ser este já consagrado nos países europeus. Porém, aqui no Terceiro Mundo, o Brasil demonstra que isto não pode ser feito, porquanto não há garantias mínimas de continuidade de qualquer regime tributário que permita o planejamento de longo prazo. Diante deste quadro, portanto, é na Constituição Federal que devem ser tratados temas de relevância inquestionável, como o são os de natureza tributária. O mínimo de segurança para os contribuintes brasileiros não está na mera edição de leis, mas sim na edição de leis de nível constitucional.

É novamente a pragmática brasileira que demonstra o quão longe está o discurso que embasa o projeto e a realidade vivida pelos contribuintes. Dir-se-á que isto é o custo Brasil, mas, na realidade, é fruto do custo da insegurança provocada pela mudança de tais parâmetros e da conseqüente perda da experiência dos tribunais. Dir-se-á, então, que o sistema tributário brasileiro permanecerá fadado à complexidade. Não somos solidários a isto, mas não negamos a circunstância de que a escolha sobre sua manutenção ou não deverá passar pelo exame de ponderações como estas, pois não cremos que alterações deste porte trarão a simplificação tributária cogitada pelo governo. Pelo menos durante uns bons longos anos.

Pedro Guilherme Accorsi Lunardelli é advogado, mestre, doutor e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet)

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