Título: 60 anos de Auschwitz
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 14/02/2005, Opinião, p. A16

Em 27 de janeiro comemoraram-se os 60 anos de libertação dos campos de concentração de Auschwitz-Birkenau, palco da mais cruel degenerescência a que conseguiu chegar o ser humano. O transporte de prisioneiros começou em junho de 1940, com a chegada de um grupo de poloneses oponentes do regime nazista. Mais tarde, vieram as levas de judeus, trazidos em vagões de carga como animais. Os prisioneiros eram instalados em barracões de madeira, em cujo interior havia beliches de três andares. Os homens e mulheres válidos eram forçados ao trabalho, enquanto os doentes, velhos e crianças eram eliminados. Muitas crianças ficavam entregues à sanha de cachorros policiais famintos. O excesso de trabalho e a fome enfraqueciam e esgotavam os prisioneiros. Alguns dos presos foram submetidos a experiências médicas, visando à descoberta de métodos fáceis de esterilização. Os condenados a morrer eram conduzidos às câmaras de gás, método pelo qual foram eliminados mais de um milhão de judeus, cujos corpos foram cremados. Em conversa com adolescentes, pude verificar que desconheciam em grande parte esses fatos. As imagens e notícias nos jornais e na televisão acerca dos 60 anos da libertação de Auschwitz pouco transmitiam sobre a grandiosidade efetiva do mal perpetrado de forma a causar a indignação que os fatos merecem. As informações dos noticiários não têm o poder de educar da conversação, pois, como ressalta Gadamer, um dos mais importantes filósofos alemães do século passado, ler uma conferência não é falar. Quando se lê, o papel está entre quem fala e quem ouve. A melhor forma de educar é a conversação. É importante, portanto, falar aos jovens sobre o racismo nazista e Auschwitz, para não só relatar os fatos e trazê-los ao conhecimento das novas gerações, mas principalmente buscando responder à pergunta angustiante: como foi possível? Sugiro que, no início das aulas do ensino médio ou da universidade, algum dos professores converse com os alunos sobre as idéias básicas que motivaram o nazismo e o racismo anti-semita, pois a história ensina ao revés o relevo dos valores da pessoa humana. Faço, com o alerta de Gadamer, uma conversa com o leitor sobre como foi possível a barbárie do assassinato em massa dos judeus, por parte de um povo culto e ilustrado como o alemão. A pergunta inicial há de ser: o que é o racismo? O racismo constitui um comportamento político e social de exclusão do exercício de direitos básicos de um determinado grupo de pessoas, tendo em vista suas características físicas ou culturais. Trata-se de uma forma de inferiorizar o outro, de uma estrutura mental que considera os outros diversos, não se lhes atribuindo a possibilidade de estar "entre nós", de gozar dos mesmos direitos, o que constitui "uma expulsão continuada do outro". Na história ocidental, houve duas expressões significativas de racismo, as mais duráveis e malévolas, o anti-semitismo e a pretendida supremacia da raça branca sobre a negra, que justificou a escravidão da qual nosso país ainda traz marcas culturais. As leis de Nuremberg, de 15 de setembro de 1935, limitavam a cidadania alemã àqueles de descendência alemã. Os judeus tornaram-se estrangeiros na terra onde haviam nascido, proibindo-se aos alemães as uniões e até mesmo relações sexuais com os judeus, visando à manutenção da "pureza da raça".

O conceito de raça ariana e de raça hebraica colocava-se, antes de mais nada, como um dado político-ideológico

O conceito de raça ariana e de raça hebraica, independentemente de qualquer fundamento científico, punha-se, antes de mais nada, como um dado político-ideológico, como um instrumento da concepção de um povo germânico unido pelo mesmo sangue, em função do que se justificaria a exclusão e até a destruição dos outros que não pertencessem ao povo "superior e dominante". Em especial, os judeus foram vítimas dessa concepção maniqueísta de "nós e os outros", e passaram a ser o objeto do ódio, vistos como o bode expiatório, considerados como os inferiores a serem eliminados. Houve na ideologia nazista uma apoteose do ego, um sentimento de superioridade dos membros da comunidade dos homens de sangue ariano, que, ao invés de enaltecer o espírito, apenas liberou instintos primitivos de destruição. O racismo é o resultado dessa atitude cultural e se transformou em um dos principais instrumentos de um programa político de dominação, que legitimava uma parte da população trucidar outra. O racialismo, ao contrário do racismo, pensa o mundo em termos de raça, enquanto o racismo é uma teoria e prática política, um programa político que pretende alcançar um objetivo de exclusão e segregação de determinado grupo, como forma de exaltação da comunidade que se outorga a condição se superior. O risco dessa presunção de superioridade frente a outros grupos sociais está sempre presente, a se ver as barbáries hoje cometidas em nome da democracia contra pessoas de origem árabe ou da religião muçulmana. Por isso, a luta contra o racismo deve ser constante e vigorosa. Os organismos internacionais, com base na Convenção Internacional para Eliminação do Racismo, de 1966, vêm combatendo todas as formas de racismo. Não se pode permitir o esquecimento e muito menos a negação do vergonhoso morticínio, especialmente de crianças e mulheres nos campos de concentração nazistas. Por isso, hoje se incrimina a negação do holocausto, como já ocorre na Espanha, em Portugal e na França, sendo neste último país condenado o pensador Roger Garaudy por negacionismo de Auschwitz. Condenação essa confirmada pela Corte Européia de Direitos Humanos. As comemorações dos 60 anos da libertação do campo de Auschwitz obrigatoriamente se inserem no quadro da memória coletiva, mas a lição a ser retirada da história, e a ser transmitida aos jovens, apenas alcançará sua sensibilidade se os mais velhos conversarem sobre o horror que os homens puderam cometer ao se arvorarem superiores aos outros, a ponto de justificar e organizar a sua destruição em massa.