Título: Fundos soberanos
Autor: Santiso , Javier
Fonte: Valor Econômico, 25/03/2008, Opinião, p. A19

Os fundos soberanos têm monopolizado nos últimos meses as manchetes da imprensa nos países membros da OCDE. O debate em torno deles se concentra essencialmente nas diretrizes das suas políticas de investimento e do seu peso crescente no sistema financeiro global. Surpreende, porém, que sua faceta como ferramenta para o desenvolvimento não esteja presente de nenhuma forma em nenhuma destas polêmicas.

A omissão é, no mínimo, eloqüente, especialmente porque os fundos soberanos surgiram exatamente nos países emergentes e em vias de desenvolvimento. Além da sua expansão espetacular, a notícia promissora é que os fundos soberanos são (ou têm o potencial de ser) veículos importantes no financiamento do desenvolvimento, não só nos seus países de origem, como também nas demais regiões emergentes nas quais eles investem, como é o caso da América Latina.

Em primeiro lugar, os fundos soberanos são responsáveis pela importante mudança de poder que está ocorrendo na economia global e financeira. A polêmica que os cerca, tanto pelo receio de que seus investimentos estejam sendo guiados por razões políticas, como por sua falta de transparência, não encobre o fato de que seu desenvolvimento espetacular simboliza a profunda transformação que está acontecendo na economia internacional: os países emergentes estão se transformando nos credores do mundo industrializado. Desde o começo da década atual, as economias emergentes apresentam saldos de conta corrente positivos e exportam capital ao resto do mundo, convertendo-se no motor mais dinâmico da economia mundial. Quando a OCDE foi criada, há cinco décadas, seus países membros concentravam cerca de 75% do PIB mundial; agora, representam apenas 55%.

O aparecimento dos fundos soberanos, portanto, deve ser interpretado através de uma ótica mais ampla: pela primeira vez, os países em desenvolvimento concorrem de igual para igual com os gigantes da OCDE. Os novos atores das finanças globais já não têm suas sedes unicamente na City londrina ou em Nova York, mas também em enclaves mais exóticos, como Pequim, Cingapura ou Dubai. Além disso, seu tamanho não é nada desdenhável: os principais fundos soberanos dos Emirados Árabes Unidos, Kuait e China alcançaram um tamanho equiparável ao dos maiores gestores de ativos e hedge funds globais. No fim de 2007, haviam concentrado conjuntamente mais de US$ 3,1 trilhões, segundo o Morgan Stanley, um valor próximo do total de valores negociados no conjunto da África, Oriente Médio e Europa Oriental - próximo dos US$ 4 trilhões - ou ao da soma de todos os mercados de valores da América Latina. Se o seu crescimento se mantiver no mesmo curso, o Morgan Stanley calcula que o volume global dos fundos soberanos poderia atingir os US$ 17 trilhões na próxima década, cerca de 5% da riqueza financeira mundial.

Em segundo lugar, e o que é ainda mais impressionante, os fundos soberanos não só financiam o desenvolvimento econômico dos seus países de origem, como também o de muitos países já desenvolvidos. Tem chamado a atenção, particularmente, por exemplo, o recente resgate de instituições financeiras ocidentais com uma sólida tradição, por parte de alguns fundos soberanos, que foram duramente abaladas pela crise das hipotecas subprime.

Para além das manchetes sensacionalistas, porém, os fundos soberanos estão fazendo uma aposta firme e decidida nos mercados emergentes, com importantes investimentos na América Latina e demais regiões em desenvolvimento. Este é o caso da Temasek Holdings de Cingapura, uma instituição veterana criada em 1974 que, com uma carteira de US$ 160 bilhões, ostenta importantes participações no banco indiano ICICI e na Tata Teleservices. A Ásia (incluindo o Japão e excluindo Cingapura) já representa 40% da carteira da Temasek, uma porcentagem superior à dos investimentos no seu próprio país (38%) e que é o dobro dos investimentos realizados na região da OCDE (20%).

Esta aposta nos mercados emergentes já está gerando receitas. A título de exemplo, o Kuwait Investment Authority (KIA), fundo soberano kuaitiano que conta com US$ 215 bilhões, obteve um benefício substancial por sua participação de US$ 750 milhões no Banco Industrial e Comercial da China. Outros fundos soberanos do Oriente Médio, como o qatariano e o dubaiense, estão levando a cabo importantes investimentos na sua própria região e no Norte da África. Um dos primeiros investimentos de primeira linha da Adia (Abu Dhabi Investment Authority) foi feito no Banco Egípcio de Investimentos EFG Hermes, com uma participação de 8%. O Investment Group também mantém participações no Norte da África em empresas como Tunísia Telecom (17,5%) e Dubai International Capital e, apesar de continuar concentrando 70% da sua carteira na Europa, investe cada vez mais na Ásia e no Oriente Médio.

É muito provável que o futuro traga mais investimentos para as economias emergentes e em desenvolvimento, de cuja arrancada a América Latina poderia se beneficiar. A KIA já está reduzindo a proporção da sua carteira investida na Europa e nos Estados Unidos para abaixo de 70%, na comparação com os 90% iniciais. Para que investir em economias desenvolvidas que crescem em nível inferior a 2% quando as latino-americanas crescem a níveis superiores a 5%?

Estamos, portanto, diante de boas notícias para a América Latina: os fundos soberanos injetaram capital nas empresas locais e em projetos de infra-estrutura. A consolidação de carteiras que ofereçam segurança a longo prazo contribuirá também para a redução da volatilidade financeira na região, já que o investimento dos fundos soberanos é menos sujeito à demanda da rentabilidade imediata e dos lucros de curto prazo que caracterizam os gestores de ativos ocidentais. A ironia reside em que esta mesma filosofia foi exatamente a que levou os fundos soberanos a investir predominantemente em países da OCDE, longe das suas economias.

No futuro, as estratégias de diversificação de carteiras levará os fundos soberanos a buscar não só uma rentabilidade elevada, como também dotações menos ligadas aos seus países de origem. Isso acarretará com toda a certeza um interesse crescente em regiões como a América Latina. Se os fundos soberanos decidirem destinar cerca de 10% dos seus investimentos a outras economias emergentes na próxima década, seria possível gerar rendimentos próximos dos US$ 1,4 trilhão, ou, o que é o mesmo, uma soma anual superior ao de toda a ajuda que os países da OCDE destinam ao desenvolvimento. Os países da América Latina fariam bem em não perder esse trem.

Javier Santiso é diretor e economista-chefe de Desenvolvimento no Centro de Desenvolvimento da OCDE.