Título: Ruralistas desafiam Cristina e bloqueiam estradas argentinas
Autor: Rocha , Janes
Fonte: Valor Econômico, 26/03/2008, Internacional, p. A13

AP Desabastecimento: açougue em Buenos Aires fica sem carne devido a bloqueios realizados por produtores rurais Com pouco mais de cem dias de governo, a presidente da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, está enfrentando sua primeira grande crise interna. O rechaço ao aumento dos tributos sobre as exportações de grãos, anunciado há duas semanas, levou milhares de produtores rurais a um protesto que entra hoje em seu 14 dia.

Ontem à noite, os manifestantes conseguiram um surpreendente apoio de moradores de Buenos Aires que saíram às ruas da capital batendo panelas e cercaram a Casa Rosada, sede do governo.

Com caminhões, tratores e caminhonetes, os produtores bloquearam as estradas de maior circulação da produção agrícola, cortando a passagem em 300 pontos de 29 localidades nas províncias de Buenos Aires, Santa Fé, Entre Ríos, Córdoba, Santiago del Estero, San Luis e La Pampa - área que concentra mais de 80% da produção agropecuária argentina.

As filas de caminhões se estendiam ontem por vários quilômetros e, além do caos de trânsito no interior do país, têm como alvo bloquear a circulação de carne, frango, verduras e lácteos. Estes produtos já começaram a sumir das prateleiras dos supermercados e do pequeno comér-cio varejista de Buenos Aires.

O protesto foi convocado pelas principais entidades de classe do setor por causa de uma medida anunciada no dia 11 pelo ministro de Economia, Martín Lousteau. Ele elevou a chamada "retenção", uma espécie de imposto sem devolução cobrado sobre as exportações de grãos, mas que também atinge a carne e os combustíveis. Por essa medida, do valor total que se exporta em soja, 44,1% passam a ficar retidos pelo governo, contra 35% antes. Os recursos servem para engordar o superávit fiscal, justificou o ministro Lousteau. Também subiu a retenção sobre o girassol, mas foi reduzida a que o governo cobrava sobre milho e trigo.

Este foi o quarto aumento de retenções sobre a exportação de grãos promovido pelo governo argentino nos últimos cinco anos. No caso da soja, dessa vez foi criado um sistema de retenção móvel, pelo qual quanto mais o preço sobe no mercado internacional mais o produtor ou exportador deixa para o governo, saindo de um piso de 20% e chegando aos 44,1% quando a cotação internacional atinge US$ 580 por tonelada. Mas o que mais irritou os produtores foi que, a partir desse limite de US$ 580, o governo leva nada menos que 95% da diferença.

"Essa é uma medida confiscatória e inconstitucional", afirma o engenheiro agrônomo e diretor executivo da Associação Argentina de Biocombustíveis, Claudio Molina. Sua opinião coincide com a de vários especialistas que têm se manifestado nos últimos dias em jornais, TVs e rádios argentinas sobre o protesto. Alfredo Rodes, diretor executivo da Confederação de Associações Rurais das províncias de Buenos Aires e La Pampa (Carbap), disse que a soja já contribui com US$ 12,5 bilhões em retenções e que o problema agora não é mais a retenção e sim a falta de retorno do dinheiro. Os produtores se queixam de falta de estrutura e de crédito e das estradas ruins.

Ontem a presidente Cristina Kirchner deu uma forte resposta aos produtores. Em um discurso na Casa Rosada, chamou a manifestação de "piquetes da abundância", porque está sendo promovida pelo setor que mais ganhou dinheiro no país nos últimos cinco anos, graças aos preços recordes das commodities no exterior.

Ela disse também que as retenções são usadas pelo governo para manter o câmbio desvalorizado e estável em 3,15 pesos, o que tem garantido uma rentabilidade aos produtores argentinos de 16% a 17% acima da dos produtores brasileiros. Segundo Cristina Kirchner, o governo argentino sustenta o câmbio através de um sistema de "administração", que consiste em absorver o dólar quando entra o dinheiro da safra agrícola para que se mantenha o valor. Se não fosse a atuação do governo, disse ela, o dólar cairia. "Isso se faz com uma política que está sendo sustentada pelo governo e também forma parte do superávit fiscal", afirmou.

Cristina foi contundente com os produtores. Lembrou que no final da crise, em 2003 e 2004, eles pediram e foram atendidos na renegociação de suas dívidas no Banco de La Nación (estatal). Cristina disparou: "É uma espécie de socialização das vacas magras. Quando as vaquinhas estão gordas, ficam para eles". E repetiu o que seus ministros já disseram: "Não vou me submeter a nenhuma extorsão". Os manifestantes mantiveram a linha dura e disseram que manterão os protestos nas estradas até o governo aceitar rever as medidas.