Título: ONU perde a antiga liga
Autor: Marcos Strecker
Fonte: Valor Econômico, 11/02/2005, EU & FIN DE SEMANA, p. 10/15

Ao completar 60 anos, a Organização das Nações Unidas (ONU) enfrenta o desafio de realizar uma reforma profunda que a livre do risco de tornar-se irrelevante. A reforma é essencial para que a ONU seja mais eficiente não apenas em situações de ameaça à segurança internacional, mas também no estímulo ao desenvolvimento. O secretário-geral, Kofi Annan, classificou 2004 como o "annus horribilis" da organização, profundamente dividida desde a iniciativa dos EUA de atacarem o Iraque, em 2003, sem autorização do Conselho de Segurança - episódio que sempre faz lembrar o atentado terrorista, em Bagdá, também naquele ano, em que a ONU perdeu um de seus mais valiosos quadros, Sérgio Vieira de Mello, alto comissário para Direitos Humanos. Não contribui para melhorar o clima o fato de que a doação de recursos pelos países ricos para ajuda ao desenvolvimento é insuficiente. No ritmo atual, as Metas do Milênio de redução da pobreza não serão alcançadas. A reforma mais aguardada é a da área de segurança internacional. Uma comissão, chamada de "alto nível" por incluir 16 ex-chefes de Estado e diplomatas com vasta experiência e reconhecidos internacionalmente (o presidente foi o ex-primeiro ministro tailandês Anand Panyarachun) entregou suas conclusões no início de dezembro. O relatório reformula o conceito de ameaça à segurança internacional para incluir terrorismo, mas não endossa a proposta americana de validar como ações de legítima defesa ataques a países que tenham desenvolvido armas de destruição em massa. Uma grande mudança foi apontar como uma das causas de instabilidade a pobreza extrema em países em desenvolvimento. Apesar da falta de acordo em torno das reformas do Conselho de Segurança, diplomatas de países desenvolvidos e em desenvolvimento acreditam que as conclusões da comissão e as negociações para a reforma podem resgatar a unidade perdida na ONU desde a invasão do Iraque pelos EUA e Grã-Bretanha. O ex-embaixador americano Brent Scrowford, que participou da comissão, diz que os EUA têm que ver "com esperança" as mudanças propostas. A diplomata canadense Louise Fréchette disse ao jornal "The Globe and Mail" que as conclusões da comissão criam uma "tremenda oportunidade para tornar a ONU mais capaz de lidar com uma grande gama de ameaças à paz e à segurança". Para ela, perder essa oportunidade "não coloca a ONU no leito de morte, mas cria o risco de que a organização perca a habilidade e a confiança internacionais para tratar dos desafios fundamentais à paz e à segurança". O representante do Brasil na comissão, embaixador João Baena Soares, diz que um bom sinal foi um acordo entre os países sobre a definição de terrorismo - entendido como qualquer ação que tenha como alvo a população civil e por objetivo a intimidação. Subsistem, porém, diferenças importantes em relação ao nível de ameaça necessário para que o Conselho de Segurança autorize o uso de força. O embaixador ressalta que a pobreza extrema em algumas regiões do mundo foi incluída como uma ameaça à segurança, o que poderá ajudar a criar maior mobilização para doação de recursos ao desenvolvimento. O objetivo da comissão, disse, é revigorar o multilateralismo e evitar ações unilaterais. Baena Soares acredita que, apesar da ação unilateral dos EUA no Iraque, a ONU preservou sua importância no cenário internacional. "O ano de 2004 foi realmente difícil. Mas não se pode olhar o papel das Nações Unidas apenas no período de um ou dois anos. A organização conseguiu impedir conflitos graves em seus 60 anos de história." Apesar da pressão dos EUA, a comissão manteve o poder do Conselho de Segurança na avaliação do uso de força. Foram incluídas como ameaças à segurança situações como a ameaça de genocídio, mas não foi aceita a sugestão de incluir a proliferação nuclear. Este foi um dos temas mais polêmicos tratados na comissão, conta o embaixador brasileiro, que votou contra a sugestão de se instituir uma moratória na produção de urânio enriquecido para fins pacíficos. Os países que subscrevessem as novas normas teriam garantido o suprimento de urânio enriquecido por companhias nos EUA, Europa e Japão. A proposta afetaria o Brasil, que acaba de abrir a fábrica de enriquecimento de urânio em Resende para suprimento de usinas nucleares. "A sugestão me pareceu mais comercial do que de segurança", afirma Baena Soares. Não houve acordo sobre mudanças no Conselho de Segurança, um dos maiores objetivos brasileiros na reforma da ONU. Há duas propostas para aumento do número de membros (nenhuma concede veto aos novos integrantes). Uma das alternativas é criar seis novos assentos permanentes e outra é criar assentos com mandatos de quatro e dois anos. O Brasil, um dos candidatos a novo assento, já recebeu o apoio do Japão, Alemanha e Índia. Durante a discussão do relatório, o Brasil foi contra uma proposta de mudança das representações regionais, que substituiria o grupo "América Latina e Caribe" por um denominado "Américas", que incluiria o Canadá e os EUA. Também se sugeriu a criação de uma "comissão de construção da paz" como órgão ligado ao Conselho de Segurança. Um dos principais testes da eficácia da ONU como órgão mobilizador da comunidade internacional será o volume de doações necessárias para se atingir as Metas do Milênio, de redução da pobreza. Relatório preparado pelo economista Jeffrey Sachs afirma que os países desenvolvidos deveriam dobrar suas contribuições, a partir deste ano, para que seja possível reduzir a pobreza extrema mundial à metade, em 2015. Nenhuma grande economia completou a cota prevista de 0,7% do PIB em doações. O secretário Kofi Annan também tem pela frente o desafio de evitar uma erosão ainda mais profunda da imagem da ONU junto à opinião pública americana. A investigação sobre denúncias de corrupção no programa de troca de petróleo por comida conduzido pela ONU durante o período de embargo ao Iraque governado por Saddam Hussein não encontrou indícios de participação de altos funcionários da organização em desvios. Mas as investigações têm tido grande destaque na imprensa americana e motivaram até um inquérito paralelo do Congresso dos EUA. Será importante mostrar resultados na reforma administrativa da ONU, com uma distribuição de recursos que atenda às necessidades reais dos departamentos. Desde a década de 1990, os países mais ricos têm reduzido substancialmente as contribuições para a ONU. O orçamento, incluindo todas as agências e missões, chegou a US$ 13 bilhões em meados de 1996, antes de Annan assumir o cargo. Desde então, caiu para US$ 9 bilhões em 2000 e está hoje em torno dos US$ 10 bilhões.