Título: 1945: símbolo do breve século 20
Autor: Marcos Strecker
Fonte: Valor Econômico, 11/02/2005, EU & FIN DE SEMANA, p. 10/15

Há 60 anos, em 1945, o mundo parecia entrar numa era de otimismo e prosperidade. Foi um ano de equilíbrio entre esperança e desespero. Talvez uma pouco mais de desespero. A opinião é de Anthony Beevor, que falou ao Valor por telefone, de Londres, com a autoridade de ter escrito alguns dos maiores best-sellers sobre a história do século 20: "Berlim 1945 - A Queda" (recém-lançado no Brasil pela Editora Record), "Stalingrado", "The Spanish Civil War" e "Paris After the Liberation". O ano de 1945 foi aquele em que soldados soviéticos, caminhando numa floresta, descobriram Auschwitz. Também foi o ano das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. E do fim da Segunda Guerra, conflito que causou o maior número de mortos da história da humanidade. Foi o ano em que 50 países (Brasil incluso) fundaram a Organização das Nações Unidas (ONU). Entrava-se na "era de ouro", expressão cunhada pelo historiador Eric Hobsbawn, uma época em que a "transformação econômica, social e cultural foi a maior, mais rápida e mais fundamental da história", como ele descreve em "Era dos Extremos - O Breve Século XX". Iniciava-se um período de prosperidade que, como diz Hobsbawn, seria encerrado na década de 1970. Para o historiador, o fim da União Soviética e a queda do Muro de Berlim constituem apenas um capítulo de uma crise que já se anunciava nos anos 1970, uma crise universal, de caráter global, que não teve seu curso alterado pelo Consenso de Washington, de 1989, e sua conseqüência mais visível para os países do Terceiro Mundo: o neoliberalismo - conceito que, com o Fundo Monetário Internacional (FMI), criado em 1944, foi objeto de fúria da esquerda brasileira desde os anos 1980, inclusive por parte de um de seus ilustres representantes: Luiz Inácio Lula da Silva (que, curiosamente, nasceu em 1945). O que significou 1945? Foi o ano-símbolo do "breve século 20", nas palavras de Hobsbawn. "Foi um divisor de águas", diz a historiadora Maria Aparecida de Aquino, professora da Universidade de São Paulo (USP). "Guardadas as proporções, é um divisor de águas da mesma forma que 1989-91, após a queda do Muro de Berlim, ou 2001, quando um mundo estava em fase terminal e um novo se anunciava. O imperialismo europeu estava se encerrando desde o início do século", afirma Maria Aparecida. Para Beevor, "o que marcou o século 20 foi, sobretudo, a constatação de como a ideologia podia corromper e distorcer as relações humanas e as relações entre os Estados". Em sua opinião, "o que é assustador, de certa forma, é estarmos deixando para trás o estágio do totalitarismo, com os últimos ruídos do comunismo, para vermos o nascimento de um novo conflito, entre o islamismo e o Ocidente". E se compararmos 1945 com o momento atual? Martin Jacques, ex-editor da revista "Marxism Today" e pesquisador da London School of Economics, disse de Londres ao Valor: "Comparando 1945 com os dias atuais, acho que não devemos estar otimistas. Mas não deixa de haver razões para algum otimismo. Tem a ver com o poder crescente de países e culturas que não integram o Ocidente. A expressão mais óbvia disso é a Ásia." Para ele, a China vai se tornar um poder, fato visto como positivo. Mas, ao mesmo tempo, ele avalia que o mundo presencia uma enorme regressão na ONU, com o unilateralismo. "Há outras ameaças no horizonte, como o aquecimento global, mas o ano de 1945 era um momento de liberação. Havia otimismo nos EUA, Europa, União Soviética, regiões da África e da Ásia, em diferentes países e culturas. Mas hoje não vejo esse tipo de otimismo." Foto: U.S. National Archives and Records Adm.

Celebração da rendição japonesa, em Nova York, agosto de 1945: começava um período de prosperidade que iria terminar na década de 1970, anunciando a grande crise global Beevor também não vê muita luz no horizonte da ONU, que prometia colocar a relação entre os países dentro de um novo marco a partir de 1945. "Naquele ano, a situação da ONU era muito diferente. Ela dependia da força das principais potências envolvidas, que a utilizavam para regular a Guerra Fria. Desde então, há falta de interesse e, em muitos casos, até desprezo. Qual foi o último discurso importante de russos ou americanos lá? Nem nos lembramos." Na opinião de Beevor, estão sendo dadas à ONU tarefas, muitas vezes impossíveis, de manutenção da paz em certas regiões. Ao mesmo tempo, a própria ONU se ridicularizou em alguns episódios, como a corrupção no caso do programa de troca de petróleo por comida no Iraque. "Obviamente, esperamos que a ONU se fortaleça, mas nenhuma organização internacional será realmente forte se não houver grandes poderes envolvidos. Já vimos isto uma vez com a Liga das Nações. E nada acontecerá até que os membros da ONU estejam preparados para agir não apenas com retórica, com declarações que exaltem ações humanitárias. Há um sistema de hipocrisia institucionalizado e isso não dá muito peso às ações da organização." A julgar pelo que diz o escritor inglês, portanto, não haveria muito sentido na esperança depositada pelo governo brasileiro num papel mais destacado do país na entidade, via Conselho de Segurança. E isso, se as pretensões brasileiras tiverem alguma chance de prosperar. Emir Sader, professor de sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e autor de "Século 20 - Uma Biografia Não Autorizada", diz que o direito de veto dos EUA seria suficiente para impedir qualquer reforma. "Os EUA já tiveram dificuldades em fazer passar a guerra no Iraque com a atual composição do conselho. Não há nada que leve à idéia de que vão tirar o fantasma da garrafa. O único consenso é que os perdedores da Segunda Guerra, que não estavam lá e são grandes potências, deveriam entrar (Alemanha e Itália)", afirma o professor. Foto: fotos: Reprodução

"E a democracia só se salvou porque houve uma aliança temporária e bizarra entre capitalismo liberal e comunismo" Segundo Sader, no entanto, ao reabrir um dossiê sobre a América Latina seria espinhoso para os EUA. Isso porque a Argentina e o México já manifestaram que não aceitarão a hegemonia consolidada do Brasil. "É um tema fechado, que alimenta a auto-estima do governo brasileiro, mas é negativo, até porque leva o Brasil a tentar aparecer como um aliado confiável, organizando tropas para ocupar o Haiti no lugar dos EUA. Isso está levando o Brasil a uma situação sem saída, e nem por isso os americanos vão deixar o país ingressar no Conselho de Segurança", diz. E o Brasil em 1945? Depois de anos de ditadura, afastado Getúlio Vargas, o país voltava à democracia com as eleições que deram a vitória a Dutra e "despertaram enorme interesse popular", segundo o historiador Boris Fausto. Com o resto do mundo, o país comemorou o "fim da barbárie, a derrota definitiva dos fascismos, mesmo que depois o mundo ainda tenha sido palco de barbáries", comenta Maria Aparecida de Aquino. Ou, como diz Hobsbawn, "a democracia só se salvou no mundo porque houve uma aliança temporária e bizarra entre capitalismo liberal e comunismo". Para Beevor, apesar de hoje ser muito diferente a forma que os conflitos tomam, observam-se certas semelhanças com o século 20, como a demonização do inimigo, típica da guerra entre Alemanha e Rússia no período 1941 a 1945. "Estamos vendo isso de novo, de alguma forma, particularmente no lado dos islâmicos, que acreditam que os infiéis não merecem existir. A mesma coisa também se vê, em certo grau, na propaganda americana, que demoniza quem se opõe aos EUA . Obviamente, a situação geral não é nem de perto tão terrível quanto era há 50 anos, mas nossa época também tem os seus perigos." Emir Sader acha que estamos numa época francamente pessimista. Isso, porque a Guerra Fria, comparada com o que houve antes e depois, foi um período de paz relativa. "Continuou a haver conflitos, mas apenas na periferia, nas zonas de disputa entre as grandes potências. Mesmo para a periferia, comparativamente, o equilíbrio teve aspectos positivos." Antes da Guerra Fria, afirma Sader, houve uma "guerra quente", e a ela sucederam-se outras "guerras quentes" (entre as quais se poderiam incluir as do Iraque e o confronto palestino-israelense, sobre o qual agora paira alguma luz, com o cessar-fogo anunciado). Foi um período, aquele, em que o equilíbrio nuclear era positivo, pois tinha um papel de contenção das grandes potências. "Hoje, estamos num ciclo recessivo desde os anos 1970, do qual o capitalismo internacional ainda não conseguiu sair", diz Sader.

E os intelectuais? Estão conseguindo captar o espírito do tempo? Com o colapso do comunismo, o americano Francis Fukuyama decretou em 1992 "o fim da História". Passados alguns anos, aparentemente a história de Fukuyama é que acabou. E a nova historiografia decolou. Beevor lembra que, em 1995, livros de História não vendiam. Mas "a História mudou muito nos últimos 15, 20 anos". Para Beevor, "todo o nosso passado havia sido escrito de forma coletiva, sobre os países, exércitos etc. Mas nos anos 1980 os grandes 'contratos coletivos' no mundo começaram a mudar: lealdades de classe, de Estado, de comércio entre países (a União Econômica Européia é um exemplo), tudo acabou. A revolução geopolítica e econômica dos anos 1980 e 1990 quebrou a antiga estrutura de Estados, a antiga mentalidade. As gerações pós-guerra estão num mundo com saúde e segurança no trabalho, numa sociedade livre. As pessoas ficam fascinadas por um período em que não tinham controle sobre seus destinos." Beevor continua: "As mudanças políticas e sociais foram tão grandes, desde 1945, que, se olharmos hoje, é como se os países daquela época fossem países estrangeiros, não os nossos. E os jovens estão cada vez mais interessados por isso. Livros sobre a Segunda Guerra estão vendendo de novo." Por exemplo, Beevor já vendeu mais de dois milhões de cópias com "Berlim 1945" e "Stalingrado". Para ele, isso "tem a ver com a forma como se escreve a História. Acho que a explicação é o interesse pelo destino do indivíduo, algo tão diferente do que as pessoas vivem hoje em suas vidas cotidianas." Essa nostalgia, em particular pelos grandes conflitos ligados à Segunda Guerra, coincide com o fato de o "grande romance" não estar passando por um bom momento. Especula-se até que a História pode se transformar na nova ficção. "As pessoas querem ler grandes histórias, como nos romances, mas também querem aprender. Foi nesse momento que os novos livros de História explodiram", diz Beevor.Em 1945, o otimismo tomou conta do mundo; não é esse o clima de hoje