Título: Poucas e boas
Autor: Terzian , Françoise
Fonte: Valor Econômico, 26/03/2008, Empresa & Comunicação, p. F1

No passado, a Escola Estadual Presidente Roosevelt, localizada no bairro da Liberdade, em São Paulo, foi considerada um ícone da educação. Em seu prédio desenhado pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha estudou o atual governador de São Paulo, José Serra. Na década de 70, a instituição atingiu seu auge ao matricular 3,6 mil alunos, ocupando o posto de maior escola pública do Estado. Com o passar do tempo, ela entrou em decadência e passou a registrar uma série de problemas envolvendo a gestão, a qualidade do ensino, a limpeza, o alto índice de analfabetismo e reprovação, a evasão de alunos e até a violência. Situada perto da Favela do Glicério, a quadra da escola foi várias vezes invadida por garotos de rua que pularam o muro baixo e obrigaram o professor de educação física a cancelar a aula.

De um ano para cá, no entanto, a até então dura rotina dos 1,7 mil alunos do ensino fundamental e médio da escola começou a mudar. Melhorias significativas vêm sendo registradas graças a uma série de ações que envolvem desde a parte física e pedagógica até a gestão e o relacionamento com a comunidade. Uma empresa de limpeza terceirizada foi colocada dentro da escola, reformas importantes tiveram início e até uma equipe pedagógica foi contratada para dar suporte aos professores. Por trás de todas essas transformações há o investimento pessoal de Ana Maria Diniz, membro do conselho de administração do Grupo Pão de Açúcar, coordenadora da Associação Parceiros da Educação e fundadora da Íntegra, ONG que realiza investimentos na área social. No final de 2005, Ana Maria transformou-se numa espécie de madrinha da escola pública.

Até conseguir efetuar as mudanças que começam a ser vistas hoje, Ana Maria ficou quase dois anos de mãos atadas. Motivo: a diretora da escola na época, posteriormente afastada, era totalmente resistente às sugestões de melhorias de gestão propostas pela executiva. Na frente de Ana Maria, ela sinalizava positivamente. Nas costas, boicotava cada uma de suas idéias. "Era um programa que dava trabalho aos diretores, que tinham que elaborar gráficos e dar transparência ao desempenho dos alunos", recorda Ana Maria.

Hoje, com a nova diretora Damares Motta Pereira, o relacionamento é aberto e transparente. Damares elogia o estilo de Ana Maria e diz que ela é flexível, sabe pedir licença sem passar por cima das regras da escola e sempre valoriza sua opinião. No mundo dos negócios, as decisões são tomadas com mais rapidez. Nas escolas públicas, já há muito mais burocracia e envolvimento político. Diante disso, Ana Maria acredita que um dos ingredientes imprescindíveis para a parceria dar certo é entender o programa público, respeitar o timing e conquistar a diretora e os professores. O trabalho é árduo, mas pouco a pouco traz bons resultados.

O modelo de adoção de escolas por meio de empresas ou fundações privadas é uma prática que surgiu no Brasil há quase duas décadas pelas mãos da Porto Seguro. Em 1991, Jayme Garfinkel, presidente do conselho de administração da seguradora e presidente da Associação Crescer Sempre, estava disposto a construir uma escola. Ao pesquisar na Secretaria de Educação de São Paulo, ele descobriu que todas as áreas da cidade estavam preenchidas com escolas e que o problema não era criar novos espaços, mas promover melhorias nos já existentes. Hoje, sua empresa apóia três escolas estaduais da comunidade de Paraisópolis, zona sul de São Paulo.

"Entramos com aquilo que o Estado não faz, como estimular a parte física, a manutenção e a coordenação de trabalhos dos professores, via premiações", explica Garfinkel. O sonho de construir uma escola própria, no entanto, não foi deixado para trás. Por meio da Associação Crescer Sempre, ele criou e mantém uma pré-escola. Por ano, a Porto Seguro investe R$ 4,5 milhões nesses programas educacionais.

Inspirado no trabalho feito pela empresa, o governo do Estado de São Paulo lançou, em 2005, o Projeto Empresa Educadora, que incentiva a realização de ações educacionais entre a Secretaria de Estado da Educação e o setor privado. "Com a empresa adotando a escola e auxiliando na sua ampliação e reestruturação, o Estado pode ater-se a questões maiores como as pedagógicas", afirma Maria Helena Guimarães de Castro, secretária de Estado da Educação.

Apesar da boa vontade de alguns empresários, ainda são poucos, em âmbito nacional, os casos de adoção de escolas públicas. A maior parte das histórias de sucesso concentra-se no Estado de São Paulo, onde 58 escolas públicas (estaduais e municipais) já foram adotadas por 30 empresas. Para este ano, a meta é chegar a 100 escolas e depois atingir 500 em 2010. São Paulo é dona da maior rede de educação pública do Brasil - são 5,5 mil escolas no total.

A grande impulsionadora dessas adoções é a Associação Parceiros da Educação, focada na instituição de acordos entre empresas e escolas, com o intuito de melhorar a qualidade do ensino público e do aproveitamento escolar de seus alunos. Coordenada e idealizada por Jair Ribeiro, presidente da CPM Braxis, a Parceiros da Educação é focada em quatro vertentes: infra-estrutura, gestão pedagógica, gestão efetiva e inserção da escola na comunidade. Como tem um olhar personalizado em relação às necessidades de cada escola, a associação tem obtido bons resultados no dia-a-dia de muitas crianças. Pelas provas de português e matemática aplicadas pela Fundação Cesgranrio (organização especializada em avaliação educacional) na Escola Estadual Luiz Gonzaga Travassos da Rosa (SP), adotada pela CPM Braxis, o rendimento escolar melhorou 15% desde sua adoção, em 2004.

As empresas que se comprometem a adotar uma escola pública exigem empenho da equipe escolar para promover mudanças. "Estabelecemos um compromisso em que a contrapartida da escola deve ser a obtenção de melhorias reais no aproveitamento dos alunos", afirma Adriana Pallis, sócia do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice, que adotou a Escola Estadual Presidente Kennedy, de São Paulo, em novembro passado.

Ao invés de pedir uma quadra esportiva, os alunos solicitaram primeiramente uma biblioteca. Uma campanha interna realizada no escritório ajudou a escolher os livros que comporão o acervo, enquanto uma reforma em uma sala comum vem sendo conduzida para abrigar a futura biblioteca. Outras mudanças físicas seguirão na escola, que também passará, claro, por melhorias na parte pedagógica.

Pouco a pouco, novos empresários e escolas passam a olhar para a parceria como uma alternativa importante para a melhoria da qualidade do ensino. O número de adoções poderia ser maior não fossem os problemas envolvidos. Mas há empresas que acreditam que essas iniciativas são bem menos eficientes do que, por exemplo, investir em programas intensivos de treinamento de gestores ou professores. Para a gerente de educação da Microsoft, Ana Teresa Ralston, a questão é que a adoção de escolas esbarra na falta de escala.

A Microsoft preferiu investir em treinamentos, e contabiliza, de 2003 a 2007, 24 mil gestores treinados, além de 246 mil professores e 232 mil alunos em 13.651 escolas diretamente atingidas pelo seu "Parceiros na Aprendizagem". O programa foi avaliado positivamente pela Unesco, que propôs aperfeiçoamentos, como por exemplo, melhor mapeamento dos locais onde será implementado e monitoramento mais freqüente do programa ao longo do percurso. "Mudanças de gestão política sempre afetam os projetos", afirma Adauto Cândido Soares, oficial da Unesco envolvido com o programa.

Mas o quadro nacional de adoções de escolas também poderia ser mais expressivo se houvesse um envolvimento maior do governo federal, que não tem um programa de incentivo estruturado para a adoção de escolas públicas. Procurado pela reportagem, o Ministério da Educação (MEC) informou que não se envolve nesse assunto e preferia não comentar.

Segundo especialistas, a falta de incentivo do governo federal e a necessidade de alto comprometimento das empresas em um processo de adoção de escola pública espantam muitos candidatos. Afinal, os contratos de parceria duram, pelo menos, cinco anos e exigem muito mais que dinheiro.

O sucesso da parceria também depende muito do interesse e do apoio dos diretores e professores das escolas. Muitas vezes eles se sentem ameaçados pela presença e pelas cobranças de terceiros. Resultado: não colaboram para a evolução da parceria e chegam inclusive a sabotar ações planejadas pelas empresas.

Embora muitas companhias se desdobrem na elaboração de estratégias, métricas, programas de bonificação aos professores e outras ações que visem ajudar efetivamente o aproveitamento dos alunos, envolver-se no dia-a-dia das escolas públicas não é tão simples quanto parece. O cenário atual da educação nacional é preocupante, principalmente porque o Brasil vive um momento de expansão da economia e também de carência da mão-de-obra qualificada.

Mas essa prática, tão bem vista pelo setor privado, deve ser encarada como uma alternativa e não como solução única para o problema da educação. Embora seja favorável à aproximação da escola com o setor produtivo, Nelio Bizzo, professor titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), diz não ver como a lógica empresarial de estabelecimento de metas e contribuição com a escola em função de resultados poderá contribuir para a melhoria da educação. Para ele, a aproximação deverá respeitar a lógica da escola e não apenas a da empresa.

"Estamos em uma situação de tal precarização das atividades docentes que muitos pensam que qualquer forma de ajuda é boa. Isso não é verdade. Não se pode ver a escola como um campo de refugiados, que aceita qualquer coisa", adverte Bizzo. Sua recomendação é que a escola exerça sua autonomia, trace sua proposta pedagógica com a participação da comunidade e atue de maneira articulada com ela. Empresas privadas podem ajudar, desde que não queiram controlar o projeto pedagógico da escola.

Maria Alice Setúbal, diretora-presidente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), diz que a adoção de escolas públicas por meio de empresas e fundações privadas é uma importante alternativa de apoio à educação. No entanto, não é a única e nem a prioritária. "O grande desafio do Brasil é alcançar a universalização da qualidade do ensino e não ter um país com ilhas de excelência", analisa.

Ribeiro acredita que iniciativas globais e generalizadas são importantes, mas lembra que elas não dão qualidade ou foco. "Escola não é como fábrica. Daí a necessidade de atender às necessidades específicas de cada uma", diz o executivo que, até 2010, deseja mudar a estatística de São Paulo e acertar a vida de 500 mil alunos de 500 escolas.