Título: O fantasma do racionamento permanece
Autor: Oliveira , Adilson
Fonte: Valor Econômico, 28/03/2008, Opinião ., p. A18

No final de 2007, o fantasma do racionamento de energia voltou ao cenário brasileiro. A pluviometria desfavorável exigiu o despacho das centrais térmicas alimentadas com gás natural, porém o gás disponível não é suficiente para atender simultaneamente o despacho elétrico e o consumo dos seus demais usuários.

Após a tentativa, abortada pelos tribunais, de limitar o suprimento dos demais usuários, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) sugeriu à Presidência da República alterações econômicas no despacho das centrais e na curva de aversão a risco de déficit do sistema elétrico para permitir o despacho das centrais alimentadas com derivados de petróleo, cujos custos operacionais são muito mais elevados. Em janeiro de 2008, o regime de uso da água à juzante de Sobradinho de 1300 m3/seg para 1000 m3/seg foi alterado para preservar os reservatórios que alimentam as usinas hidrelétricas nordestinas. Em fevereiro, a oferta de gás natural aumentou significativamente com a entrada em operação do gasoduto Cabiúnas-Vitória e São Pedro foi generoso na oferta de chuvas ao Sudeste.

Esse conjunto de medidas, com a ajuda de São Pedro, permitiu elevar o nível dos reservatórios. Ontem, o nível do reservatório equivalente na região Sudeste-Centro-Oeste, coração do sistema de transmissão que irriga os demais mercados regionais, atingiu o patamar relativamente confortável de 77,2%. Confiando em uma pluviometria favorável no período seco que se aproxima, as autoridades do setor elétrico derrubaram o preço no mercado spot. No entanto, indicando que certa insegurança quanto ao que São Pedro nos reserva para o período seco, o despacho das centrais de custo elevado foi mantido.

A economia brasileira vive momento favorável, apesar de a crise americana sugerir a necessidade de um otimismo cauteloso. Em 2008, o crescimento econômico será vigoroso, estimulando a demanda de eletricidade e, também de gás natural. A manutenção do equilíbrio da oferta dessas duas fontes de energia com a demanda nos próximos dois anos depende fundamentalmente da pluviometria que virá a partir do mês de maio.

A julgar pelo que está ocorrendo no sul do país, infelizmente, a pluviometria não se anuncia alvissareira. Nossas simulações para estimar a energia natural afluente (ENA) para o período de inverno, apoiadas em modelo elaborado no Instituto de Economia da UFRJ, sugerem que há uma probabilidade elevada de a ENA no período seco ficar a abaixo da média histórica. Nessa circunstância, os esgotamentos dos reservatórios elétricos e de gás natural terão que ser acelerados colocando em risco o suprimento de energia em 2009, colocando novamente no horizonte o fantasma do apagão.

A recorrência desse fantasma é difícil de compreender para os neófitos do mercado energético brasileiro. Afinal, o Brasil dispõe de reservatórios com capacidade para armazenar água suficiente para atender cerca de 50% do consumo anual do país e tem parque gerador termelétrico suficiente para atender o restante do consumo, se operado a plena capacidade. Esses dois indicadores sugerem que, se os reservatórios hidrelétricos e os de gás natural forem geridos de forma eficiente não há razão para a permanência do fantasma do apagão. Por que, então, isso não ocorre?

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Sucedem-se os governos e as dificuldades no suprimento energético acabam sendo creditadas a São Pedro, quando na verdade elas são fruto de sinais de preço equivocados oferecidos ao mercado. Os consumidores são induzidos a utilizarem estoques existentes que deveriam ser preservados para uso futuro pelo fato de os preços não refletirem os custos de oportunidade das fontes de energia que estão sendo ofertadas. Em outras palavras, o fantasma do apagão é fruto da má gestão econômica dos estoques disponíveis de energia.

Explicando. Nos períodos de chuvas abundantes são praticados preços baixos, induzindo os grandes usuários a consumirem no mercado livre a energia que deveria estar sendo armazenada para uso futuro. Quando a estiagem chega, os custos elevados da energia, decorrentes do esgotamento precoce dos reservatórios, são socializados no ambiente regulado. A Abrade estima que as medidas do governo para afastar (temporariamente) o fantasma do apagão custarão para os consumidores cativos das distribuidoras mais de R$ 2,5 bilhões.

O governo Fernando Henrique decidiu liberalizar o mercado energético, depois de meio século de controle monopólico estatal. Para evitar um choque tarifário, o seu governo adotou estratégia gradual para a liberalização dos preços dos energéticos, que deveria ser completada após 2002.

O governo Lula preservou as condições estruturais do mercado energético herdadas do governo anterior, mas não deu continuidade ao processo de liberalização dos preços energéticos. O governo atual preferiu negligenciar o papel dos preços como sinal de escassez para os agentes do mercado elétrico. Mais ainda, os preços da energia comercializada pelas centrais existentes foram mantidos em patamares substancialmente inferiores aos preços da energia comercializada pelas novas centrais.

Para evitar o risco de apagão foi criado o Comitê de Monitoramento do Sistema Elétrico (CMSE) que tem conseguido evitar o problema, com a ajuda de São Pedro. A substituição dos sinais de preço pela gestão burocrática do suprimento energético funciona, enquanto as chuvas ajudarem. Os custos dessa gestão somente serão percebidos pelo governo e pelos consumidores nos próximos reajustes tarifários e as estimativas disponíveis sugerem que esse custo será salgado para todos, mas principalmente para os consumidores cativos. Em economias de mercado, não há mecanismo mais eficiente para a gestão da escassez que os sinais embutidos nos preços.