Título: Sem barreira à automedicação
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Fonte: Correio Braziliense, 14/02/2011, Opinião, p. 12

Desde meados do século passado, quando o descobridor da penicilina, o bacteriologista escocês Alexander Fleming, identificou um germe imune ao medicamento, a medicina se preocupa em combater o mau uso dos antibióticos, que só funcionam quando tomados na dose certa e pelo tempo certo. Do contrário, sabe-se desde então, as bactérias ganham resistência, vencendo a luta contra o remédio.

O novo conhecimento não foi suficiente para conter a expansão das superbactérias, que ainda hoje se multiplicam planeta afora. Em 2006, mais uma delas, a Klebsiella pneumoniae, conhecida pela sigla KPC, era identificada nos Estados Unidos. Causadora de pneumonia e infecções urinárias, ataca pessoas imunologicamente debilitadas, em geral doentes internados por longos períodos em unidades de terapia intensiva (UTIs).

Em 2010, o micro-organismo fez a festa no Brasil, deixando em alerta a saúde pública. Depois de centenas de casos e dezenas de mortes registrados, sobretudo no Distrito Federal, mas também em São Paulo, em Minas Gerais, no Paraná, em Goiás, no Ceará e na Paraíba, para citar os principais focos, o governo reagiu em algumas frentes. Determinou o óbvio: o reforço dos controles da assepsia nos hospitais e da venda de antibióticos nas farmácias.

Mas, diz o dito popular, manda quem pode, obedece quem tem juízo. Ou seja, sem fiscalização rigorosa, as medidas certamente teriam a força dos placebos. Aliás, tarja-vermelha, os antibióticos já deveriam, por lei, ser vendidos apenas com prescrição médica. Só que, em vez de cobrar o cumprimento da exigência legal, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) baixou resolução, em outubro último, obrigando os estabelecimentos a exigirem receitas, retendo uma via e devolvendo a outra ao paciente, carimbada.

Pois as medidas nem completaram quatro meses em vigor e basta se afastar alguns poucos quilômetros da capital da República para se comprar antibióticos sem a menor dificuldade. Nenhum balconista de farmácia dos municípios goianos de Valparaíso, Cidade Ocidental e Novo Gama apresentou qualquer exigência a repórteres do Correio que fizeram a experiência. Tampouco tiveram o cuidado de registrar as vendas no Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados ou em livro documental próprio, com telefone, endereço e RG do paciente, como manda a resolução.

Se não existe fiscalização, o que torna inglória a luta de duas décadas dos infectologistas brasileiros por controle mais eficiente desse tipo de comércio, também faltam campanhas de esclarecimento público à população sobre os riscos da automedicação. Urge conscientizar a sociedade, cobrar maiores responsabilidades de farmacêuticos e funcionários de drogarias (cuja conduta ética deve ser acompanhada mais de perto pelos respectivos conselhos regionais) e afastar dirigentes de órgãos encarregados de inspecionar a comercialização de remédios que negligenciam o serviço. Enfim, basta de condescendências com desculpas esfarrapadas.