Título: O aperfeiçoamento da escolha de juízes
Autor: Saddi , Jairo
Fonte: Valor Econômico, 31/03/2008, Legislação & Tributos, p. E2

Há debates no Brasil que resistem a mudanças de paradigmas e geram impasses institucionais graves. Um deles é a escolha de juízes de tribunais superiores por meio da indicação do quinto constitucional. Pelo artigo 94 da Constituição Federal de 1988, "um quinto dos tribunais superiores será composto de membros do Ministério Público e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, indicados pelos órgãos de representação das respectivas classes", cuja origem histórica remonta à Carta de 1934. Os críticos de tais preceitos alegam que, muitas vezes, o critério de indicação tanto dos órgãos de classe - como a Ordem dos Advogados do rasil (OAB) - quanto da representação do Ministério Público acabam seguindo vieses políticos pouco desejáveis. O impasse surgiu com a decisão da OAB de reapresentar ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) os nomes dos seis candidatos a uma vaga, que dias antes haviam sido rejeitados pela corte, alegando apadrinhamento político. Segundo informações obtidas pela imprensa, dos 28 ministros da corte, 19 já teriam declarado que repetiriam o voto. Por sua vez, a OAB anuncia que levará o caso ao Supremo Tribunal Federal (OAB).

Tanto a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) como a Associação de Juízes Federais do Brasil (Ajufe) estão propondo uma emenda revogando o artigo 94 da Constituição de 1988, alegando que o argumento a favor do quinto constitucional - ao menos quanto aos advogados, de que estaria arejando a magistratura, contribuindo para a renovação da jurisprudência e melhorando a qualidade da prestação jurisdicional ao cidadão - não se cumpriu e que melhor seria se juízes de segundo grau (tribunais) ou ministros do STJ fossem para lá guindados apenas pela promoção da carreira de juízes.

Aqui, é necessário relacionar a indicação aos tribunais superiores com o acesso à carreira judiciária, por meio de concurso público. Isto pela simples razão de que os ministros dos tribunais superiores de amanhã são promovidos a partir de uma carreira que se inicia com o concurso público. Ora, o argumento a favor da extinção do quinto constitucional se baseia em uma premissa que pode não ser inteiramente verdadeira: o concurso público para a magistratura é a melhor forma de selecionar candidatos à judicatura.

Nosso concurso público à carreira é composto por provas escritas e orais e, sabidamente, apresenta difícil e complexo nível. Mas, como todo concurso, possui muito mais um caráter eliminatório do que puramente de admissão e, muitas vezes, só são analisados aspectos de conhecimento jurídico (imprescindíveis a um juiz), desconsiderando muitos outros aspectos humanos, que deveriam ser levados em consideração, além do saber das leis e do processo: personalidade, experiência anterior, adequação ao perfil que se espera de um juiz etc.

Interessante experiência é a que se iniciou recentemente na Inglaterra. A escolha de juízes no Reino Unido cabe ao Judicial Appointments Committee (JAC), criado em 2005 como um órgão público, não departamental, estabelecido pela reforma constitucional daquele ano. O papel desta comissão é escolher candidatos a juízes a partir de um verdadeiro processo seletivo, empregando as mais modernas técnicas de recursos humanos. A seleção se dá com base no mérito, mas por intermédio de concorrência aberta e transparente.

-------------------------------------------------------------------------------- Na recente experiência da Inglaterra, a escolha de juízes cabe a uma comissão criada em 2005 como um órgão público --------------------------------------------------------------------------------

O fato é muito relevante, já que é a primeira vez em 900 anos que o Lord Chancellor, o responsável no Poder Judiciário pela nomeação de membros da corte, não mais possui o monopólio da escolha de juízes. O processo de seleção se dá com com a comissão entrevistando, avaliando e selecionando os candidatos, cabendo aos membros dessa comissão fazer uma recomendação ao Lord Chancellor, que pode rejeitá-la - mas está obrigado a fundamentar suas razões para tanto.

Desde 2006, três são as prioridades do Judicial Appointments Committee no seu trabalho, remunerado e de tempo integral: 1) Definir o conceito de mérito na seleção de um juiz, ou seja, quais são os atributos necessários e as competências pessoais para um bom julgador - ou, em outras palavras, o que faz um bom juiz; 2) Refinar e aperfeiçoar o quão efetivo e o quão imparcial e justo são os métodos utilizados pela comissão para avaliar o conceito de mérito; 3) Determinar como se pode encorajar um maior número de candidatos, dentro do perfil desejado, a se submeterem ao processo seletivo.

Alguns poderão indagar a diferença entre o concurso público e um processo de seleção mais empresarial como o que está em vigor atualmente no Reino Unido. Múltiplas são as diferenças. Um processo mais transparente, menos conceitual e mais sistêmico, inclusive com anúncios públicos de contratação, tem uma maior probabilidade de receber um grande número de melhor candidatos. Por seu turno, o acesso a juízes de primeiro grau precisa ser repensado e ser criada uma verdadeira carreira única de magistrados, puramente baseada em desempenho e objetivos.

Já a escolha de um quinto dos tribunais baseada em critérios vagos e ambíguos - como, por exemplo, o "notório saber jurídico" ou a "ilibada reputação" -, caracterizando-se por ser puramente política, classista ou partidária, como o que se tem atualmente nos tribunais superiores, é absolutamente incerta: pode-se ter bons candidatos, que levam aos tribunais superiores um certo arejamento e uma visão mais real, enquanto é plenamente possível candidatos que conseguiram granjear apoio na indicação, foram nomeados, mas são absolutamente tíbios e incapazes de se tornarem bons julgadores, quando não se revelam corruptos.

A participação dos advogados na seleção de tais juízes, no primeiro grau, é imprescindível. Mesmo que nas bancas de concurso possam participar um ou outro advogado, é preciso um processo de seleção no início da carreira muito mais profundo e prático. Psicólogos e especialistas em recursos humanos também são igualmente imprescindíveis. Somente aí é que se poderá acabar com o quinto constitucional, mas com a garantia de termos melhores juízes do que temos atualmente.

Jairo Saddi é doutor em direito econômico (USP), pós-doutorado pela Universidade de Oxford e diretor do Ibmec Direito do Ibmec São Paulo

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