Título: Crise ameaça cortar fatia argentina nas exportações de soja
Autor: Rocha , Janes
Fonte: Valor Econômico, 31/03/2008, Agronegócios, p. B18

A queda-de-braço entre os produtores rurais e o governo já fez a Argentina deixar de exportar pelo menos 2 milhões de toneladas de soja em grão e óleo de soja. Este volume deveria ter sido embarcado na última semana, mas não foi, o que motiva preocupações. "Há risco de perda de mercado e de valor de negociação pelo impacto da crise financeira internacional, que tornou os preços da soja muito voláteis", diz a economista Lorena D'Angelo, analista da divisão de Informações e Estudos Econômicos da Bolsa de Comércio de Rosário.

O fato é que a soja virou alvo de uma das maiores crises políticas na Argentina, deflagrada pela decisão do governo da presidente Cristina Kirchner de abocanhar mais da metade da renda do setor por meio de um aumento das retenções sobre as exportações. Parados há duas semanas em protesto contra o aumento, com caminhões e tratores atravessados nas estradas, os produtores - não só de soja, mas de trigo, milho e girassol, além dos pecuaristas - causaram um enorme transtorno no trânsito, além do desabastecimento de alimentos nos grandes centros urbanos. Os produtores chegaram a anunciar o fim da greve na noite de sexta-feira, mas retomaram as paralisações um dia depois.

Em conseqüência da paralisação, afirma Lorena, até o fim da semana passada havia 38 navios parados à espera de uma oportunidade para carregar milho, soja e derivados. Metade das embarcações estava nos terminais do Porto de Rosário e a outra metade na entrada do Rio da Prata, a caminho desta cidade onde se concentra o mais importante complexo graneleiro da América Latina. "Empresas que têm logística [de processamento e transporte de grão] em outros países, como Brasil e Estados Unidos, estão desviando seus barcos", aponta a analista.

Segundo a economista, os prejuízos financeiros são difíceis de calcular, devido à volatilidade das cotações internacionais. Para ela, se a paralisação terminar esta semana, a Argentina não vai perder seu espaço no mercado, devido à forte demanda por soja em todo mundo, principalmente na Ásia. Mas se o conflito se prolonga, acredita, "será difícil recuperar a perda de negócios e a confiança dos clientes". Neste momento, o terminal portuário de Rosário deveria estar embarcando milho da safra passada - para clientes na Espanha, Portugal, Nigéria e Taiwan -, abrindo espaço para que os embarques de soja em grão pudessem começar ainda nesta semana.

Há grande preocupação no país com os efeitos das novas regras para retenção de exportações sobre a soja, que vigoram desde o dia 11 passado. Por estas regras, a retenção passa a ser móvel, variando de 20% a 44,1% (antes era 35%), até um limite de US$ 580 por tonelada. Se a cotação internacional ultrapassa este limite, o governo leva 95% da diferença. Pablo Andreani, diretor da consultoria Agripac, calculou que com este nível de retenção o governo argentino vai arrecadar este ano US$ 11,6 bilhões, 139% mais que o arrecadado em 2007.

Em um estudo encomendado pelo Banco Mundial, que deverá ser publicado em junho, Andreani mostra que a Argentina foi, junto com o Brasil, o país que mais vem ganhando espaço no mercado internacional da commodity. Nos últimos dez anos, o país mais que duplicou sua participação no comércio mundial de soja, de 7% na safra 1995/96 para 15% na última temporada. De 2,1 milhões de toneladas, o país passou a vender 11 milhões, um crescimento de 436% em dez anos - só superado pelo Brasil, que em igual intervalo avançou 761%, segundo o mesmo estudo.

A área plantada aumentou 5 milhões de hectares no período, e centenas de produtores desistiram do gado de corte e leite para plantar soja. Isso porque, ao mesmo tempo em que o país avançou na soja, perdeu várias posições de seu destacado papel no mercado internacional de carne. Por força de retenções, controle de preços e mesmo proibição de exportações, a Argentina está exportando atualmente quase o mesmo que o Uruguai, país menor que a Província de Buenos Aires.

"A política oficial para a carne fracassou. Temos problemas com a oferta de carne e preços mais altos do que os consumidores podem pagar", sustenta Andreani.

Por outro lado, o maior avanço dos argentinos se deu com farelo e o óleo de soja, nos quais o país saiu de uma participação em torno de 20% a 30% para 50% e 60% do mercado mundial. "As grandes multinacionais fizeram fortes investimentos em capacidade de moagem na Argentina ao mesmo tempo em que fechavam plantas no Brasil e nos EUA", lembra Lorena.

"As novas medidas fazem a Argentina perder a competitividade", afirma Andreani. Segundo ele, a expansão da área plantada de soja se deu principalmente no Norte e Noroeste do país, regiões de terra pouco produtiva nas quais a soja se adaptou bem, porque exige menos do solo - ao contrário do trigo ou do milho, que nunca poderão ser plantados em tais áreas. "Desses 5 milhões de hectares, 3 milhões deixam de ser rentáveis com as novas retenções por causa dos custos", calcula. São áreas que estão a mais de mil quilômetros dos portos, o que significa duplicar o custo do frete. "O governo está expulsando estes 5 milhões de hectares e com eles vamos perder 9 milhões de toneladas de produção, equivalentes ao ingresso de aproximadamente US$ 4,5 bilhões. E o pior, não haverá nada no lugar".