Título: Delfim ainda não vê excesso de demanda
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Fonte: Valor Econômico, 01/03/2008, Brasil, p. A4

Delfim Netto: "A única coisa que sabemos que há em excesso no Brasil é a dengue. Sobre isso não há dúvida" Antes de adotar qualquer medida para desaquecer a demanda é preciso, primeiro, saber se há excesso de demanda, recomenda o ex-ministro Antônio Delfim Netto. Ele tem fortes dúvidas a respeito do real descasamento entre a oferta e a demanda por bens e serviços na economia, propalado pelo Banco Central, que acabará gerando pressões inflacionárias indesejáveis. "A única coisa que sabemos que há em excesso no Brasil é a dengue. Sobre isso não há dúvida", diz, num misto de bom humor e indignação em relação à postura do Banco Central, que acena com a elevação da taxa de juros, a Selic, já em abril para esfriar a demanda agregada e abortar um eventual aumento da inflação acima da meta de 4,5%.

"A não ser que o BC saiba de coisas que ninguém sabe, não há nenhuma prova de que há excesso de demanda que exija uma ação imediata, mesmo porque não sabemos quais serão os efeitos da crise americana na economia mundial, se os preços das commodities vão cair, se a recessão vai pegar a Europa, a China. Se isso acontecer, não será preciso mexer em nada", avalia.

Se constatado, porém, que há realmente um excesso de demanda, prossegue o ex-ministro, "não pode haver dúvida de que a única medida decente e que menos prejuízo causará ao investimento e ao crescimento da economia é o corte dos gastos de custeio do governo." Delfim Netto e o economista Luiz Gonzaga Belluzzo tiveram recentemente uma reunião com o presidente Lula, onde essas questões macroeconômicas foram discutidas, juntamente com o ministro da Fazenda, Guido Mantega, e o presidente do BC, Henrique Meirelles.

Ambos, que têm sido conselheiros do presidente, concordam que a medida mais recomendável caso o diagnóstico do excesso de demanda se confirme, é fiscal e deve recair sobre os gastos correntes do setor público, conforme também declarou Belluzzo ao Valor. Ou seja, eles estão sugerindo medidas na direção oposta ao que o governo faz ao, por exemplo, conceder - como ocorreu há poucos dias - reajustes salariais para 800 mil funcionários públicos ao custo adicional de R$ 2,1 bilhões este ano.

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, não conseguiu evitar que essa despesa permanente fosse criada agora, sob o patrocínio do ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, comentaram assessores da Fazenda. É difícil imaginar o governo fazendo um maior aperto fiscal em ano de eleições municipais e com o presidente Lula com popularidade invejável.

Como argumenta o ex-ministro Delfim Netto, porém, essa é uma alternativa bem mais saudável do que a alta da taxa de juros que, segundo ele, seria uma medida "devastadora" para as expectativas de investimentos. Não pelo custo do dinheiro, pois a grande maioria das empresas no país se financia à Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) e não pela Selic. O empresário, porém, vai ver que ao elevar os juros básicos o governo estará reduzindo a demanda futura e, portanto, o mercado de consumo para seus produtos.

O boletim Focus divulgado ontem - a pesquisa do BC junto ao mercado - indica que a expectativa de juros para dezembro deste ano deu um salto, saindo de 11,25% para 12%. "Veja que coisa fantástica, como é uma embricação extremamente delicada. Os informantes do Focus são do sistema bancário. Se você olhar todas as estimativas do Focus elas crescem milimetricamente. A estimativa de juros para o fim do ano, porém, teve uma função descontínua. Deu um pulo. Ou seja, o BC assusta o sistema bancário, este obedece ao BC e ajusta suas expectativas, mas antes o BC já havia obedecido ao sistema bancário que demandou juros mais elevados. É uma corrente da felicidade em que o 'presunto' é o Tesouro Nacional, que é onde tudo desaba e faz crescer a dívida interna", acrescenta.

A dívida pública interna está crescendo em termos absolutos, embora esteja caindo como proporção do Produto Interno Bruto (PIB). "Você acha que o sistema bancário aumenta a expectativa de juros porque está preocupadíssimo com o fato de as expectativas de inflação terem aumentado de 4,5% para 4,6% este ano? Eles estão interessados é porque aumentando os juros seu lucro aumenta proporcionalmente e o Tesouro é que vai pagar isso. Esse que é o ponto", diz o ex-ministro.

O excesso de demanda, lembra Delfim Netto, "desaba é nas contas correntes". Ou seja, para suprir a economia doméstica o país aumenta suas importações, que acabam por crescer em ritmo bem mais veloz do que as exportações, reduzindo o superávit ou mesmo criando déficit na balança comercial. O déficit corrente seria a diferença entra o saldo comercial e o déficit da balança de serviços.

O BC, em suas mais recentes estimativas, está prevendo para este ano um déficit de aproximadamente US$ 12 bilhões, numa virada importante se confrontado com o superávit nas transações correntes do balanço de pagamentos de US$ 1,5 bilhão no ano passado. Delfim, porém, acha que o déficit estimado para este ano não chega a ser um problema, ao contrário "é até saudável para a taxa de câmbio e para o país, pois o Brasil não precisa ser financiador do mundo". O risco, contudo, não é ter um pequeno e financiável déficit em conta corrente, mas a dinâmica que ele pode assumir, de crescimento exponencial.

Essa foi uma das questões mais discutidas na reunião com o presidente Lula, há três semanas e, naquele momento, foi dito com toda a clareza que não existe nenhuma garantia de que nos próximos quatro a cinco anos o país conseguirá manter uma situação folgada nas contas correntes como ainda há hoje. Para conseguir isso, também foi sugerido que o governo adote um forte programa industrial-exportador, que é o que está sendo construído pelo Ministério do Desenvolvimento e pelo BNDES.

O risco é Lula chegar na campanha eleitoral de 2010 tendo reeditado a vulnerabilidade externa do país, depois de este ter feito um ajuste asiático nas contas do balanço de pagamentos. E isso, por duas razões: valorização da taxa de câmbio e pressão da demanda sobre as importações.

Se o BC elevar a taxa Selic na reunião de abril, estará ajudando a valorizar ainda mais o real. "Dado o 'merchandising' feito pelo sistema financeiro, nos últimos dias, pelo aumento da taxa de juros, sugiro duas medidas imediatas: a estatização do Banco Central e o controle do ingresso de capitais. Em legítima defesa, apelo para o necessário, mas impossível controle de capitais. Já que não se pode fazer o que deve ser feito, vamos fazer o errado", diz Delfim, sem esconder uma certa irritação. "Há economistas que cometem a desfaçatez de dizer que pelos seus cálculos será preciso um aumento de no mínimo 1,75 pontos percentuais na taxa Selic", acrescenta, referindo-se ao último relatório da Goldman Sachs.