Título: Inflação começa a erodir a popularidade dos Kirchner
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Fonte: Valor Econômico, 01/04/2008, Opinião, p. A10

Os aumentos das cotações internacionais da carne, trigo e soja tornaram-se um inferno para os produtores rurais argentinos. Longe de gozarem das benesses dos preços em alta, eles estão em protesto em mais de 300 localidades da Argentina e bloqueiam estradas, em um movimento que completou ontem 19 dias. O resultado do movimento até agora foi o desabastecimento de carne, leite e verduras nos supermercados de Buenos Aires e a primeira crise política enfrentada pela presidente Cristina Kirchner, no cargo há pouco mais de três meses.

O motivo dos protestos é a elevação das retenções, impostos sem devolução, cobradas pelo governo dos exportadores de soja e trigo e outros produtos. Para a soja, a retenção subiu de 35% até 44,1%, em uma gradação que segue os preços internacionais. O governo inovou mais uma vez e, se os preços externos do grão ultrapassarem US$ 580 por tonelada, o imposto será de 95%. Ao mesmo tempo, foram reduzidas as retenções para o milho e trigo, foi estabelecida uma para o girassol, mantendo-se as da carne e dos combustíveis.

A presidente Cristina Kirchner reagiu com a mesma dureza que caracterizou a gestão de seu marido, Néstor, que a antecedeu. Ela qualificou os protestos de "piquetes da abundância", mas não esperava o fato de que, logo após os seus discursos, panelaços tomassem conta de Buenos Aires e manifestantes se concentrassem diante da Casa Rosada. Como as pesquisas dos últimos dias mostraram, a manifestação dos produtores rurais têm o apoio da classe média portenha. Houve uma rápida suspensão dos protestos para uma negociação entre agricultores e governo, que se arrastou pela noite de sexta-feira adentro, sem acordo. A proposta das associações rurais é que o governo volte atrás nas retenções por um prazo de 90 dias. Sem acordo, os protestos continuaram e se estenderam ao corredor do Mercosul, com piquetes interrompendo caminhões que entram no país por Entre Rios.

Cristina não pretende recuar e a polícia foi enviada para garantir o trânsito da carga vinda de outros países do Mercosul. Além disso, os piqueteiros urbanos foram convocados para se manifestarem em defesa do governo e hoje será a vez da aliada CGT promover um ato público de apoio à posição governista diante dos produtores. Em reunião no domingo, chegou-se a uma pauta de concessões que podem dividir e enfraquecer o movimento rural. Pequenos e médios produtores, que exportem até 500 toneladas - 80% do total, calcula o governo - terão devolução automática das retenções, o que anula o aumento e um subsídio para fretes. A venda externa de trigo será reaberta. O governo anunciou ontem o pacote na Casa Rosada.

A repentina emergência de protestos nas capitais é um sintoma seguro de que a inflação atingiu patamar preocupante, bem acima dos 8,5% que os índices suspeitos de manipulação do governo indicam. Boa parte dos economistas acha que a inflação está rondado a uma velocidade pelo menos duas vezes maior. Néstor Kirchner acelerou os gastos públicos , impulsionados por aumentos salariais e de aposentadorias, enquanto que a emissão monetária aumentou pela política de sustentação de um câmbio desvalorizado correspondente a cerca de 3,17 pesos por dólar. Os juros continuam em terreno negativo e, tudo somado, a economia já cresce há quatro anos acima dos 8% ao ano. A política intervencionista de Kirchner, por outro lado, afugentou investimentos em infra-estrutura e criou um grave fosso entre demanda e oferta de energia, que poderá motivar novos apagões e racionamento para as indústrias quando o inverno chegar. Como resultado, os preços subiram e não se sabe de nenhuma ação decisiva para combater a alta, a não ser a manipulação dos índices.

A explicação oficial para o aumento das retenções varia. Há quem diga que ela está sendo utilizada para aumentar o superávit primário. Cristina argumenta que a retenção financia a compra de dólares que mantém desvalorizado o peso - que melhora a rentabilidade dos agricultores. E que serve, ainda, para evitar a "sojificação" - a expulsão de outras culturas trazida pelas altas cotações do grão. Seja como for, a política econômica que serviu para tirar rapidamente a economia da mais profunda crise de sua história não está mais funcionando.