Título: O jogo de empurra na epidemia da dengue
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 02/04/2008, Opinião, p. A14

Os 65 mortos no Estado do Rio vítimas de uma epidemia de dengue - e, destes, os 44 que sucumbiram ao mosquito aedes aegypti na sua capital - são cadáveres municipais, estaduais ou federais? Embora a questão possa parecer agressiva, ela encerra, infelizmente, a mais nova disputa entre a prefeitura do Rio, comandada pelo prefeito César Maia (DEM), e os governos federal e estadual. É quase uma repetição de 2005, quando o colapso do sistema de saúde da capital fluminense rendeu acusações de todos os lados, enquanto doentes morriam nas filas dos hospitais públicos. Na época, o alvo das acusações de Maia foi o então ministro Humberto Costa. Hoje, o mesmo Maia aponta o dedo para o atual ministro, José Gomes Temporão. Como há três anos, o prefeito abusa das frases de efeito - como a de que a epidemia de uma doença transmitida por um mosquito que prolifera em água parada é a "coqueluche nacional" e a acusação a todos, exceto a si próprio, de "lavar as mãos" como Pôncio Pilatos.

Como em 2005, o prefeito, que vive os últimos meses de seu segundo mandato, usa de raciocínios tortuosos para eximir-se da responsabilidade pelos seus mortos. Segundo ele, uma mortalidade mais alta nos hospitais estaduais do que nos municipais livram a prefeitura da culpa pelo enorme número de doentes que lotam os hospitais e as tendas montadas pelo Exército para atendimentos de emergência. E, afirmou o prefeito, cabe ao Ministério da Saúde "a coordenação do combate às endemias e epidemias".

Para o ministro, o fato de o surto concentrar-se na capital fluminense é suficientemente esclarecedor da responsabilidade das autoridades municipais pela epidemia. Segundo a "Folha de S. Paulo" (20 de março), Temporão considerou que a prefeitura, ao não adotar procedimentos técnicos para o combate à proliferação do mosquito transmissor da dengue, tornava-se a grande responsável pela epidemia.

O surto de dengue no Rio não devia ter surpreendido as autoridades envolvidas nesse jogo de empurra. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), os casos de dengue no Brasil vêm aumentando desde 2004. Naquele ano, foram 112 mil os casos notificados. Em 2007, eles chegaram a 560 mil. No ano passado, o país respondeu por quase dois terços dos casos de dengue das Américas. O Rio tem enorme contribuição nesses números. Tomadas as primeiras cinco semanas do ano, em comparação com o mesmo período do ano passado, os casos de dengue no país caíram 39,7%. O Estado do Rio, no entanto, teve um aumento de 117,4% nas notificações da doença. A capital fluminense respondeu por 67% delas.

Como "a dengue é uma doença que manda aviso", segundo o professor da Faculdade de Medicina da USP, Evaldo Stanislau, não foi por falta dele que a antiga capital federal se vê em apuros. Segundo o Ministério da Saúde, em outubro os governos de Estados e municípios em situação de risco haviam sido avisados da eventualidade de epidemias no verão. Apesar disso, no ano passado o Ministério da Saúde cortou pela metade a verba de prevenção e controle da malária e da dengue - ambas transmitidas pelo mosquito aedes aegypti. O Estado do Rio, por sua vez, reduziu em 48,6% a previsão de gastos com o combate à dengue este ano, em relação ao ano passado. A prefeitura, por sua vez, diminuiu a verba para vigilância sanitária de 2003 a 2006. A partir dessa data, não existem mais informações sobre o quanto foi gasto para o combate ao mosquito.

Os números mostram, mais uma vez, que União, Estado e prefeitura da capital fizeram economia às custas de vidas humanas. Mas existem ainda outros fatores do descontrole sobre os casos de infectação pelo mosquito da dengue. A desarticulação das ações de União, Estado e município em ações de saúde pública é um deles. O ministério aponta também a falta de empenho na implantação do Programa Saúde da Família, que no Rio cobre apenas 8% da população. Os agentes de saúde poderiam ter exercido um papel importante no combate aos focos de dengue, já que por princípio atuam diretamente nas comunidades mais carentes, as mais atingidas até agora pela epidemia. O pior, todavia, é o uso político de um fato tão grave. Em casos de saúde pública, o único interesse que deve prevalecer é a vida.