Título: Começa a transição
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 12/02/2011, Mundo, p. 24

¿O Egito está livre! O Egito está livre! Ninguém mais vai atar minhas mãos.¿ Às 18h40 de ontem (14h40 em Brasília), enquanto caminhava entre a multidão, do palácio presidencial até a Praça Tahrir, o estudante Nadeem Abdel Gawad, 20 anos, clamava essas palavras ao telefone. Estava eufórico e, às vezes, parecia chorar. Ao fundo, buzinas e gritos se espalhavam pelo Cairo. ¿As pessoas choram, se ajoelham e rezam. Você não pode acreditar nisso¿, contou. Em frente ao prédio do Parlamento, bem perto de Tahrir, a jornalista independente Aliaa Hamed, 27 anos, interrompeu a entrevista e começou a gritar efusivamente. ¿Estamos livres do passado de Mubarak¿, declarou ao Correio. ¿As pessoas acreditam que Deus derrubou o regime¿, acrescentou. Cerca de 40 minutos antes de atenderem o celular, Nadeem, Aliaa e 80 milhões de egípcios tinham presenciado o desenrolar da história.

Depois de 29 anos no poder, o presidente Hosni Mubarak sucumbiu a uma revolução que teve a ajuda da internet, surpreendeu o mundo, durou 18 dias e custou a vida de pelo menos 300 egípcios. Desde as 18h de ontem (hora local), o Egito passou o poder às mãos do Conselho Supremo das Forças Armadas, liderado pelo ministro da Defesa, o marechal Mohamed Hussein Tantawi. ¿Em nome de Deus, o misericordioso, o compassivo. Durante essas circunstâncias muito difíceis pela quais o Egito está passando, o presidente Mubarak decidiu que deixará o cargo e já pediu ao Conselho das Forças Armadas que assuma as gestões do país. Que Alá nos ajude¿, afirmou o então vice-presidente, Omar Suleiman, ao ler um comunicado na TV. Horas antes, circulou o boato de que Mubarak tinha deixado a capital rumo ao balneário de Sharm el-Sheikh, no Mar Vermelho.

Duas horas após a renúncia de Mubarak, um porta-voz do Conselho Supremo das Forças Armadas divulgou uma nota com tom conciliador e reconheceu que ¿não será uma alternativa à legitimidade popular desejada pelo povo¿. Também cumprimentou o ex-presidente ¿por tudo o que deu ao país em tempos de guerra e de paz, e por seu patriotismo, priorizando os mais altos interesses da nação¿. Tantawi, o novo governante do Egito, dirigiu-se à frente do palácio presidencial e cumprimentou a multidão, de dentro de um automóvel civil.

Sem Mubarak pelo caminho, a oposição começa a planejar um papel ativo na transição. Mohamed ElBaradei, ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica e Prêmio Nobel da Paz, disse que a ¿vida pode recomeçar¿. ¿Minha mensagem aos egípcios é que eles ganharam a liberdade. Façamos o melhor uso dela e que Deus os abençoe¿, celebrou, em entrevista à TV Al-Jazeera. Ele acrescentou que 11 de fevereiro de 2010 já é o melhor dia de sua vida. A organização Irmandade Muçulmana, outra força anti-Mubarak, destacou o ¿triunfo pacífico¿ da população e agradeceu ao exército ¿por ter cumprido com suas promessas¿. ¿Mubarak foi obrigado a sair pela vontade do grande povo egípcio e é resultado de uma política de injustiça e de corrupção¿, afirmou à agência France-Presse o porta-voz Jamil Abu Bakr. ¿Esta deve ser uma lição para muitos regimes árabes que utilizam os mesmos métodos contra seu povo.¿ Por sua vez, Amr Mussa, secretário-geral da Liga Árabe, anunciou na TV egípcia que abandonará o cargo. ¿Deixarei a Liga Árabe nas próximas semanas¿, revelou. ¿O que ocorreu hoje (ontem) no Egito foi uma revolução branca¿, emendou.

Por meio do microblogue Twitter, Wael Ghonim ¿ o diretor do Google que ficou 12 dias atrás das grades ¿ expôs sua alegria em várias mensagens. Tão logo foi divulgada a notícia da renúncia de Mubarak, ele escreveu: ¿Bem-vindo de volta, Egito¿. O homem que iniciou a revolução no país sugeriu que o dinheiro supostamente roubado pelo ex-presidente deveria ser revertido para as famílias dos ¿mártires¿ e para reconstruir o Egito.

Orgulho Emocionada, Aliaa admitiu estar ¿muito orgulhosa¿ e disse não se importar com o poder concentrado em uma junta militar. ¿Por 27 anos, por toda minha vida, tive um único presidente. Agora, não posso acreditar que veremos a democracia. Vamos eleger nosso presidente e viver em liberdade, é como se fosse um sonho¿, comemorou a jornalista. ¿Eu não acredito que os militares pretendam deter o poder por muito tempo.¿ Na Praça Tahrir, o webdesigner Tarek Shalaby, 26 anos, mal esperou a pergunta do Correio e desabafou: ¿Você viu nossa revolução, como ela é extremamente bonita?¿ Ele contou que o povo celebrou o fim da era Mubarak com fogos de artifício, danças e cantos. ¿Havia felicidade em cada canto dessa praça¿, descreveu. Shalaby ainda não sabe como ficará o país nas mãos de uma junta militar. ¿Eles prometeram destituir o Parlamento e trabalhar em prol da democracia. Se o fizerem mesmo, será lindo¿, concluiu.

Nadeem acredita que o Egito se libertou de um ¿regime brutal¿. ¿Estamos muito orgulhosos pelo que fizemos. Provamos que nada é impossível. Somos um país mais forte e livre¿, afirmou, com a voz trêmula. De acordo com o estudante, o poder do povo falou mais alto. ¿O exército vai se responsabilizar pela segurança, pela transição e pelas eleições, até que tenham um governo civil. Isso é importante¿, elogiou. Ele garante que ninguém teme o Conselho Supremo das Forças Armadas. ¿Os militares estavam ao lado dos manifestantes¿, lembra.

Eu acho...

¿Hosni Mubarak é um ditador, um tirano. Ele nunca foi nosso presidente. Nós queremos que os militares controlem o poder, nesse período de transição. Em breve, teremos uma nova Constituição, um novo Parlamento e, então, teremos um novo presidente¿ Aliaa Hamed, 27 anos, jornalista, moradora do Cairo

¿Oh, meu Deus, não ter mais Mubarak no poder é simplesmente maravilhoso! Tenho 26 anos. Não sei o que é ter outro regime, além desse governo corrupto. Estou orgulhoso por termos derrubado Mubarak. Estamos virando uma nova página no Egito¿ Tarek Shalaby, 26 anos, webdesigner, morador do Cairo

Novo governo enfrenta desafios

Tatiana Sabadini

Com a saída de Hosni Mubarak, o poder no Egito está nas mãos dos militares. As Forças Armadas contam com o apoio e o respeito da população, mas deixam dúvidas se devem promover as reformas democráticas, aclamadas pelos manifestantes. O Conselho Supremo das Forças Armadas anunciou que não deve abolir uma autoridade civil no futuro ou se voltar contra a vontade do povo. Os novos comandantes do país tentam se manter neutros em meio à crise e declaram que ficariam no poder apenas durante o período de transição no país. O mundo e a população do Egito aguardam, atentamente, os próximos passos do novo governo.

Os chefes militares enviaram quatro comunicados diferentes ontem. Nos três primeiros, divulgados antes da renúncia de Mubarak, eles garantiram a realização de eleições em breve e prometeram retirar o estado de emergência que vigora há 30 anos no país, depois do fim das manifestações. O Conselho também pediu que a vida no Egito volte ao normal e fez uma advertência contra qualquer ataque à segurança do país.

Economia As Forças Armadas devem enfrentar outros desafios, além de manter a ordem. O governo de transição precisa criar medidas para garantir que a economia não entre em colapso. O controle do novo processo político é essencial, a fim de que os desejos da população sejam atendidos e um governo autoritário não volte ao poder. Os militares sempre se mantiveram acima de qualquer mandatário e gozam de uma imagem positiva entre a população.

No início da crise no Egito, as Forças Armadas permaneceram na sombra, atentas, mas sem se manifestar. Depois de mais de duas semanas de protestos, o Conselho Supremo das Forças Armadas se reuniu pela terceira vez na história do país, anteontem, para tomar uma posição. A pressão internacional, especialmente dos Estados Unidos, pode ter forçado uma atitude dos militares. Somente o governo norte-americano investe mais de US$ 1 bilhão por ano nas tropas egípcias.

O líder da junta militar que comandará o país é Mohamed Hussein Tantawi, 75 anos, um forte aliado de Mubarak. Ele ocupa o cargo de ministro da Defesa desde 1991 e foi o único sobrevivente a diversas mudanças no governo. Conhecido como o ¿poodle de Mubarak¿, Tantawi compareceu às manifestações para pedir que a população terminasse com os protestos. O comandante participou de três conflitos contra Israel, inclusive da Guerra dos Seis Dias, em 1967. Em uma correspondência da diplomacia americana, divulgada pelo site WikiLeaks, o militar é definido como ¿alguém reservado, cordial e charmoso, porém resistente a mudanças¿. O comandante, segundo o departamento de Estado americano, estaria comprometido a manter o acordo de paz com Israel.