Título: Não há crise no setor aéreo
Autor: Sérgio G. Lazzarini
Fonte: Valor Econômico, 15/02/2005, Opinião, p. A8

As constantes notícias sobre a queda da Vasp e a interminável novela sobre o destino da Varig dão à sociedade a má impressão de que o setor aéreo atravessa atualmente uma crise que precisa ser gerenciada pelo governo. Na verdade, a situação é oposta: é difícil rotular como "em crise" um setor cuja demanda (tráfego) cresceu 12% no ano passado, e espera crescer também neste ano. A questão é pontual: trata-se de lidar com a situação falimentar de uma empresa isolada (Varig), dado que a outra empresa em dificuldades (Vasp) viu sua participação de mercado cair para menos de 1%, sendo pouco provável que consiga se reerguer. Analisemos o caso específico da Varig. A tão discutida "crise" da empresa é uma armadilha que o governo armou para si próprio. Por algum motivo, o presidente Lula e alguns outros membros da equipe consideram que a Varig é uma empresa "estratégica" para os interesses nacionais e merece, portanto, ser resgatada. Ao reforçar esse pensamento, o governo acaba suscitando intermináveis barganhas com credores e controladores da empresa, despendendo recursos públicos no processo (quantos estudos já foram feitos sobre a empresa e o setor?) e abrindo espaço para muita demagogia. Afinal, como não salvar uma empresa que leva a comitiva do governo para estreitar laços com a China e que transporta doações para as vítimas do tsunami? Na verdade, a posição do governo parte de uma premissa errônea. Não há nada de "estratégico" no setor aéreo. Se uma determinada rota é lucrativa, não há dúvida de que haverá empresas dispostas a suprir o serviço. Rotas menos demandadas podem ser supridas por meio de acordos entre empresas tradicionais e empresas de aviação regional. Mesmo no caso de rotas internacionais, empresas estrangeiras têm buscado agressivamente oportunidades no Brasil. Só não o fazem mais porque existem restrições regulamentares para empresas estrangeiras explorarem conexões no Brasil e rotas domésticas (as chamadas "liberdades" de vôo). Tampouco a Varig pode ser considerada uma empresa "estratégica" para o país. A sua participação de mercado já vem caindo consistentemente nos últimos anos. Mesmo tendo resolvido a maior parte dos seus compromissos financeiros, há dúvidas se a Varig seria capaz de competir em um cenário onde, do lado doméstico, surgem operadoras de baixo custo e, do lado internacional, aumenta a avidez de empresas internacionais por novos mercados. Além disso, outras empresas nacionais (notadamente a TAM) já buscam uma estratégia mais agressiva de internacionalização das rotas.

A participação de grupo estrangeiro na Varig poderia tornar a empresa mais competitiva nas rotas internacionais

Sob esse aspecto, a solução mais conveniente para os gestores e controladores da empresa é uma volta ao passado: um maior controle sobre a entrada de novas firmas e, se possível, uma volta à monopolização de rotas (conforme proposto pelo estudo da Trevisan encomendado pelo governo). Em tese, isso garantiria o retorno aos atuais e potenciais acionistas da empresa, logo facilitando uma possível reconversão das dívidas da empresa por ações que seriam transferidas aos atuais credores. De quebra, essa solução seria consistente com a idéia de preservar a Varig como empresa "estratégica" para o país. Quem perderia é a sociedade, pois qualquer redução de competição nada mais faz do que preservar ineficiências e inibir reduções de preços aos consumidores. A mais recente solução proposta pelo governo, envolvendo uma espécie de estatização temporária, busca um objetivo meritório ao tirar o controle da empresa das mãos da Fundação Rubem Berta. Porém, o meio para atingir esse fim é mais que discutível. Dado que os acionistas e potenciais investidores sabem que o governo quer de fato preservar a empresa, há um grande risco de o governo converter as dívidas da empresa por um preço alto, para depois receber um preço baixo no momento de oferta pública de ações (sem contar, além disso, os impedimentos legais para se realizar esta operação). Mais uma vez, quem perderia é a sociedade. A solução mais eficiente para a Varig deve envolver menos, e não mais, intervenção direta do governo. Deve-se tratar o setor aéreo como qualquer outro setor e tratar a Varig como qualquer outra empresa. Se a empresa não se mostrar lucrativa o suficiente, de forma que haja interesse dos atuais credores em trocar as suas dívidas por participação societária, então o melhor para a sociedade seria o encerramento gradual das operações da empresa, e a entrada de novas operadoras no mercado. O governo poderia ajudar, nesse sentido, sendo um pouco menos hostil à participação de empresas estrangeiras no setor. A participação de um grupo estrangeiro na Varig seria interessante para promover uma maior competitividade da empresa nas rotas internacionais. O grupo LanChile, por exemplo, já manifestou interesse em consolidar sua posição na América Latina por meio de aquisições. Pensando também no setor como um todo, mais valeria o governo assumir o papel de estimular o suprimento de bens públicos para o setor. Os baixos investimentos em aeroportos e infra-estrutura viária local acabam inibindo o surgimento de novas rotas lucrativas. Além disso, é fato notório em todo mundo que o segmento da cadeia aérea que mais lucra é o dos aeroportos - o que decorre, em parte, desse segmento ser um grande monopólio. É curioso que proponentes de uma política industrial mais ativa parecem ignorar essas questões, focando mais em idéias anticompetitivas (fusão entre empresas nacionais, monopolização de rotas etc.). Se há uma crise no setor aéreo, é decorrente da tendência crônica do governo em querer intervir diretamente no setor, ao invés de atuar em áreas onde traria maiores ganhos à sociedade.