Título: Poderia o FMI ter evitado esta crise?
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Fonte: Valor Econômico, 07/04/2008, Opinião, p. A11

Até recentemente, a principal função do Fundo Monetário Internacional (FMI) era conceder empréstimos a países com problemas em seus balanços de pagamentos. Hoje, porém, cada vez mais, os países emergentes preferem eles próprios cuidar de sua "cobertura de seguros" acumulando reservas (e compartilhando suas "apólices" mediante esquemas de agregação regional). Por isso, o FMI precisa mudar, fortalecendo sua função supervisora e sua capacidade de monitorar seus membros e verificando o cumprimento de sua obrigação de contribuir para a estabilidade financeira. Assim, o fato de o Fundo não ter pressionado os EUA a corrigir as vulnerabilidades em seu mercado de financiamento habitacional que precipitaram a atual crise financeira indica que resta muito a fazer.

Na verdade, em sua avaliação anual de 2006 sobre a economia americana, o FMI foi extraordinariamente benevolente em sua avaliação dos riscos decorrentes do afrouxamento dos padrões de concessão de empréstimos no mercado de financiamento habitacional americano. O FMI observou que os "mutuários sob risco substancial de aumentos de suas prestações continuam sendo uma pequena minoria, concentrada predominantemente entre famílias de renda mais alta, conscientes dos riscos implícitos", e concluiu haver "sinais de que os mecanismos de concessão de crédito e alocação de riscos no mercado habitacional americano continuam relativamente eficientes".

Isso, acrescentava o relatório, "sinaliza tranqüilidade".

Analogamente, o problema não foi mencionado em uma das mais importantes publicações do Fundo Monetário Internacional, o Relatório de Estabilidade Financeira Mundial (REFM), em setembro de 2006, apenas dez meses antes que a crise dos financiamentos de quitação incerta (subprime) ficasse evidente para todos.

Na percepção do FMI, "importantes instituições financeiras em mercados (...) maduros (...) [estão] (...) saudáveis, tendo permanecido lucrativas e bem capitalizadas", e os "setores financeiros em muitos países estão em condição vigorosa para enfrentar qualquer problema cíclico e eventuais correções no mercado".

A instituição começou a dar atenção ao problema apenas em abril de 2007, quando ele já estava irrompendo, mas não houve, mesmo então, qualquer senso de urgência. Ao contrário, segundo o FMI, a "vulnerabilidade tem se mostrado limitada a determinadas porções do mercado subprime (...), não sendo provável que constitua grave ameaça sistêmica".

Além disso, "o mercado habitacional americano parece estar estabilizando (...) No geral, o mercado norte-americano de financiamento habitacional continua resiliente, embora o segmento subprime tenha deteriorado um pouco mais rapidamente do que esperado".

-------------------------------------------------------------------------------- A instituição pode contribuir para prevenir crises desse tipo, mas somente se, primeiro, coibir influências indevidas em sua capacidade de fiscalização --------------------------------------------------------------------------------

O REFM anotou confiantemente que "testes de estresse realizados por bancos de investimentos mostram que, mesmo em cenários de quedas historicamente sem precedentes nos preços das moradias em nível nacional, a maioria dos investidores com exposição a financiamentos subprime através de estruturas securitizadas não estará sujeita a prejuízos".

Por que a supervisão da economia americana pelo FMI foi tão ineficaz?

Imagine que o acúmulo de vulnerabilidades no mercado americano de financiamento habitacional - bem "debaixo do nariz" (da sede) do FMI em Washington - tivesse acontecido num país em desenvolvimento. Francamente, é inconcebível que o Fundo tivesse deixado tão completamente de detectá-las.

O Fundo tem sido criticado por onerar os países tomadores de empréstimos com condições desnecessárias e muitas vezes perversas, mas seu quadro de pessoal extremamente qualificado nunca deixou de botar a boca no trombone quando percebeu vulnerabilidades domésticas em outros países. Então, por que não fiscalizaram a economia americana com igual zelo?

A resposta pode ser encontrada na estrutura gestora do organismo. Atualmente, a distribuição de poder no Fundo obedece à lógica do seu papel financiador. Quanto mais dinheiro um país coloca no FMI, maior sua influência. Isso pode estar fazendo com que o Fundo feche os olhos para as vulnerabilidades econômicas de seus membros mais influentes - justamente aqueles cujas políticas domésticas têm grandes implicações sistêmicas.

Esse modelo de gestão baseado em "dinheiro em troca de influência" compromete indiretamente a capacidade do FMI de criticar as economias de seus membros mais importantes - que dirá então patrulhar o cumprimento de suas obrigações. De todo modo, se as críticas de seu quadro técnico chegam a ser excessivamente francas, esses países sempre podem usar sua influência para diluir os comunicados públicos divulgados pela diretoria do FMI.

O Fundo pode contribuir para prevenir crises futuras desse tipo, mas somente se, primeiro, coibir influências indevidas em sua capacidade de fiscalização e, se necessário, criticar políticas e regulamentos de países influentes. Isso exige uma estrutura gestora distinta, em que o poder seja distribuído de forma mais equalitária, de modo que o FMI possa exercer efetivamente sua função supervisora onde deva - não apenas onde possa.

Hector R. Torres é diretor executivo do FMI e ex-presidente do "G-24 Bureau", em Washington, DC. © Project Syndicate/Europe´s World, 2008. www.project-syndicate.org