Título: As microempresas e as licitações
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 08/04/2008, Legislação & Tributos, p. E2

A Lei Complementar nº 123, de 14 dezembro de 2006, que instituiu o Estatuto Nacional das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, criou um conjunto de normas gerais voltadas ao tratamento diferenciado e favorecido para as atividades empresariais de pequeno porte. Pretendendo regulamentar o tratamento favorecido a estas empresas, o estatuto estabeleceu privilégios na participação de licitações públicas para a aquisição de bens e serviços.

De acordo com o estatuto, a comprovação de regularidade fiscal desta classe de empresas somente será exigida para efeito de assinatura do contrato. Havendo alguma restrição na comprovação da regularidade fiscal, será assegurada oportunidade para sua regularização no momento em que o proponente for declarado o vencedor do certame.

As normas estabelecidas no estatuto também asseguram às micro e pequenas empresas o direito de preferência de contratação, caso as propostas apresentadas por elas sejam iguais ou até 10% superiores à proposta mais bem classificada na licitação nas modalidades tradicionais. Na modalidade de pregão, o intervalo percentual será de até 5% superior ao melhor preço. Nestas hipóteses, o estatuto estabelece, como procedimento de desempate, que a micro ou pequena empresa melhor classificada terá o direito de apresentar uma proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que será adjudicado o contrato em seu favor. Caso não se verifique a contratação dessas empresas na forma mencionada, serão convocadas as remanescentes, na ordem classificatória, para exercício do mesmo direito. Em caso de equivalência de valores apresentados, será realizado sorteio entre elas para que se identifique aquela que primeiro poderá apresentar a melhor oferta.

Assim, o estatuto permite às microempresas e empresas de pequeno porte que, mesmo apresentando propostas com valores superiores, em caso de empate, possam ofertar uma nova proposta menor do que aquela apresentada pela empresa não beneficiada pela mesma lei O benefício, de exercício facultativo, conferido às micro e pequenas empresas, frustra a busca do melhor preço de contratação, já que as empresas, ao participarem da licitação, já têm condições de precisar o valor mínimo com o qual podem disputar. O procedimento adotado pelo estatuto, definitivamente, incentiva o licitante a não apresentar a melhor proposta ao resguardar lucros.

Ou seja, ao pretender assegurar o tratamento isonômico entre as diversas empresas do mercado, o estatuto, por falta de razoabilidade, acaba por frustrar outros princípios constitucionais relativos ao procedimento licitatório e à própria atividade administrativa. Neste prisma, o fato de o legislador infraconstitucional ter estabelecido tratamento privilegiado às microempresas e às empresas de pequeno porte não implica, por si só, ofensa ao princípio da isonomia, por violação ao direito das demais empresas de serem tratadas com igualdade, já que a discriminação encontra fundamento na própria Constituição Federal, conforme estabelecem os artigos 170, inciso IX, e 179.

Entretanto, ao legislador infraconstitucional não é permitida a criação de normas que estabeleçam privilégios que não sejam razoáveis. É de rigor que o tratamento favorecido às micro e pequenas empresas sirva ao propósito visado pela discriminação, sem que sejam desrespeitados direitos e garantias individuais, pautando-se pela razoabilidade e proporcionalidade.

A licitação destina-se a garantir o princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a administração. Neste ponto, não é conveniente que seja tratada com um instrumento de política pública, com o fito de corrigir distorções econômicas, em detrimento dos princípios que norteiam o procedimento. O que se quer dizer é que o critério discriminador adotado deve, necessariamente, considerar a finalidade do procedimento licitatório.

Vale destacar que os artigos 170, inciso IX, e 179 da Constituição Federal não trataram de estabelecer expressamente o tratamento jurídico diferenciado às micro e pequenas empresas no âmbito da licitação, já que os benefícios parecem ter alcance diverso, visando incentivá-las pela simplificação das obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias. Ainda que se ignore a amplitude conferida pelo legislador infraconstitucional, a finalidade primordial das licitações públicas não deve ser desvirtuada em instrumento de política para a efetivação de isonomia entre as diversas empresas.

O artigo 37, parágrafo XXI da Constituição Federal é o principal fundamento constitucional do procedimento licitatório, estabelecendo que, ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante licitação que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes. O legislador, sob o pálio de regulamentar os artigos 170, inciso IX, e 179 da Constituição, não poderia desconsiderar as diretrizes básicas constitucionalmente estabelecidas para o procedimento da contratação pública.

Os tratamentos normativos diferenciados se justificam pela existência da diferença, sendo considerados compatíveis com a Constituição quando houver adequação entre os fins visados e os valores consagrados no ordenamento jurídico. Em diversos pontos, o estatuto frustra a busca da proposta mais vantajosa e do tratamento isonômico entre os licitantes, e, acaba por afrontar princípios constitucionais que norteiam a atividade administrativa, como os da eficiência e impessoalidade.

Muito embora os benefícios criados não sejam, em teoria, inconstitucionais, por suposta afronta ao princípio da isonomia, é de rigor avaliar, tendo como norte os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, se as discriminações criadas pelo legislador não são arbitrárias e, portanto, incompatíveis com a finalidade da licitação.

Francisco Ribeiro Gago é advogado do escritório Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados

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