Título: Lula perde primeira jogada da reeleição
Autor: Rosângela Bittar
Fonte: Valor Econômico, 16/02/2005, Política, p. A6

O deputado e ex-ministro Delfim Netto, do PP de Severino Cavalcanti e admirador do presidente Lula mas não do PT, vaticinava ontem, depois de varar a madrugada na sessão que conduziu seu partido ao poder no Congresso e ao terceiro cargo mais importante da República, que dentro de um mês Severino e Lula estarão muito próximos. Não eram amigos até agora, mas têm tudo para ser. Ambos são nordestinos, pernambucanos, não-comunistas, católicos fervorosos, compassivos, fiéis à família (a mulher de Severino foi para a mesa da sessão da Câmara logo depois da eleição, como fez e faz Marisa Lula da Silva nos Palácios), enfim, prezam valores muito parecidos. Há outras semelhanças fortes: Severino é um produto das instituições, como Lula também o é. Neste raciocínio, portanto, não há nada a temer, até porque Severino não tem interesse em perturbar o governo. O que tinha que acontecer de ruim para Lula, já aconteceu, e foi a derrota promovida pela metade da base de apoio ao governo e a totalidade da oposição a Lula, provavelmente com uma ou outra exceção. Considerado o promotor dessa futura aproximação e avalista do desempenho de Severino que, a seu ver, não é um troglodita e não veio para confrontar o governo, Delfim dispensa as tarefas, por desnecessárias. Em sua opinião, nem Lula nem Severino precisam de intermediários. "Lula está acostumado à negociação e sabe negociar", diz Delfim, lembrando que o presidente é, há muitos anos, mais do que qualquer outro político, adepto da máxima diplomática segundo a qual "quem se senta à mesa tem que ceder alguma coisa". Em sua opinião, é o que vai acontecer. Lula passará a negociar muito com a Câmara e, do ponto de vista do funcionamento da instituição e da relação entre os dois presidentes, será apenas esta a grande diferença. "Severino e Lula vão se dar muito bem", assegura Delfim. Alguma diferença, porém, haverá. A Câmara, com certeza, passará a ter mais independência, fugirá da vassalagem automática. Muda também o peso do Congresso nas decisões: ficará muito mais difícil, por exemplo, passar aquilo de que as oposições sempre se queixaram, o "rolo compressor" do governo nas votações. Lula e, principalmente, seus ministros mais arrogantes, terão que dividir o poder. A Câmara não engolirá mais, por exemplo, medidas provisórias assinadas por voluntarismo. Com Severino, crescerá o poder da comissão encarregada de analisar a relevância e urgência dessas MPs, uma das primeiras iniciativas do novo presidente. A autonomia do Banco Central terá que chegar à Câmara em um projeto equilibrado, cercado de garantias por todos os lados; a Lei de Diretrizes Orçamentárias não poderá conter aumentos impactantes da carga tributária, e assim sucessivamente, ao contrário do que vinha ocorrendo até agora com o PT dando as cartas nas votações do Congresso. Tudo terá que ser negociado, uma perspectiva que não deve atemorizar Lula, acostumado ao estilo. Projetos que estiverem contaminados ideologicamente não serão deglutidos sem concessões do governo. A reforma universitária é um desses que passam a ter menores chances de aprovação sem muita conversa. A MP 232, outro exemplo, deverá ser triturada, risco que já corria mesmo se o governo não tivesse perdido a disputa.

"Severino e Lula vão se dar muito bem"

A eleição de Severino Cavalcanti para presidente da Câmara não determinaria, portanto, mudança radical de expectativa para a tramitação dos projetos do governo. Tanto que os mercados financeiros e de ações, tão sensíveis à eventual força ou fraqueza do governo no Congresso, não sofreram impacto. Se Delfim está correto, e pode estar - suas previsões são boas porque podem ser comprovadas ou não dentro de pouco tempo - a derrota de Lula e do PT não teria sido propriamente a opção da Câmara por Severino, mas algo que não tem remédio nem negociação que resolva. Sobre isto, o círculo político que tem foco permanente em 2006 fez análises logo após a eleição para direção da Câmara. O presidente teria, de fato, perdido ontem o primeiro lance do grande jogo estratégico do seu projeto de reeleição. A eleição de Luiz Eduardo Greenhalgh para a presidência da Câmara estava neste contexto. No esquema de poder mais próximo a Lula há muito se manifesta a convicção de que o PT precisava reconquistar, a um só tempo, a esquerda do partido e os movimentos sociais, com tempo suficiente para com eles se recompor para a campanha. Um assessor muito próximo do presidente, seu velho companheiro de PT, diz que a grande preocupação de Lula é com a chamada "base social". Fazem parte dessa base os grupos de eleitores tradicionais do PT, como o funcionalismo público, que abandonou a base social depois da reforma da Previdência promovida pelo governo Lula; o MST, que vem de sucessivas disputas com os expoentes do agronegócio, uma turma muito bem representada no governo pelos ministros Roberto Rodrigues (Agricultura) e Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento); os ambientalistas, críticos às concessões que o governo vem fazendo nessa área (por exemplo, a transposição das águas do São Francisco e a produção de madeira na Amazônia); a esquerda do PT, inconformada com os rumos da política econômica. Segundo avalia este muito próximo assessor do presidente, neste ano e ao longo de 2006, o desafio do PT será reconquistar essa base social para que ela possa participar do projeto de reeleição de Lula em 2006. Esse projeto incluiria uma espécie de reforço das linhas de autenticidade do partido. Além de inflar a popularidade do presidente, a retomada da relação com estes setores, todos militantes, representaria um resgate da candidatura original de Lula, uma reaproximação com os companheiros antigos. Esta perda foi um revés importante para quem já está agindo integralmente com o pensamento na reeleição.