Título: Contra o viés deflacionário do Banco Central do Brasil
Autor: Bruno , Miguel ; M , André
Fonte: Valor Econômico, 10/04/2008, Opinião, p. A10

Não há duvida de que a existência de defasagens na condução da política monetária torna imperioso um comportamento prospectivo do Banco Central do Brasil (BCB) com relação ao comportamento da inflação. No entanto, o argumento em prol da atual necessidade de se realizar uma alta preventiva da Selic não parece válido. Tanto o lado real quanto as expectativas de inflação da economia brasileira desabonam a tese da necessidade de uma reversão na política monetária.

Na economia real real, o balanço entre oferta e demanda agregada parece equilibrado. Primeiro, o lado da oferta. Claros sinais de expansão da capacidade produtiva, aliados a um ritmo saudável de expansão da atividade industrial, apontam para a disponibilidade de o setor atender ao crescimento da demanda por meio de expansão da oferta, e não por elevações de preços, como teme o BCB.

Some-se a isto as reiteradas declarações do setor produtivo de que, em função dos investimentos - em curso ou já realizados -, os empresários estão aptos a e, principalmente, desejosos de ampliar a produção. Por exemplo, o presidente da Anfavea declarou que o setor automotivo tem planos de investimentos da ordem de R$ 5 bilhões em 2008, ampliando-se a capacidade instalada em 280 mil veículos/ano. A cadeia como um todo pretende realizar investimentos de R$ 20 bilhões, até 2010.

Uma contração monetária seria um tremendo banho de água fria no espírito empresarial, o que pode reduzir drasticamente a sustentabilidade do atual ciclo de crescimento. Ainda que não interrompa os investimentos já em curso, uma elevação da Selic certamente inibiria novos investimentos. Aí, sim, a expansão da demanda poderia comprometer a estabilidade dos preços.

Em um momento como o atual, de possível retomada do crescimento sustentável, o efeito dinâmico de uma contração monetária sobre a capacidade produtiva não pode ser desprezado. A demanda está crescendo e, portanto, os investimentos devem ser estimulados, e não o contrário. Temerário seria afunilar o fluxo futuro de produção por meio de uma contração monetária. Há forte correlação positiva entre as variações da taxa de utilização da capacidade produtiva e da formação bruta de capital fixo. Ou seja, ao se conter os aumentos do nível de utilização da capacidade produtiva desestimulam-se os investimentos - que permitiriam corrigir eventuais restrições de oferta, que preocupam o BCB.

Apesar dos elevados níveis de utilização de capacidade, desde meados de 2007 o custo unitário do trabalho vem caindo - acumulou queda de mais de 1% nos 12 meses encerrados em janeiro. No mesmo período, a produtividade da indústria cresceu 4,5%. Essa melhora expressiva na produtividade viabiliza mais crescimento com menos inflação.

-------------------------------------------------------------------------------- Perseguindo uma inflação abaixo do centro da meta, o BC estaria violando um preceito básico do regime de metas de inflação --------------------------------------------------------------------------------

O forte aumento da produção e das importações de bens de capital, somado aos ganhos de produtividade da indústria, indica um incremento do PIB potencial. Esse quadro, por si só, já seria suficiente para questionar a necessidade de uma alta dos juros.

Do lado da demanda também não se enxergam razões para uma atuação preventiva do BCB. A participação dos salários no PIB permanece estável. Isto é, não está em curso um processo de ampliação da fatia do PIB nas mãos dos trabalhadores - que poderia sinalizar uma maior pressão de demanda.

Com relação às expectativas de inflação, elas continuam ancoradas em torno de 4,5%, ponto central da meta. No boletim Focus de 28/03, as instituições financeiras prevêem um IPCA abaixo do centro da meta, neste ano e no próximo (respectivamente, 4,47% e 4,31%). A expectativa das instituições top 5 é de 4,51%, para o acumulado em 2008, e de 4,45% para 2009. Além de ancoradas no centro da meta, as expectativas têm se mantido relativamente estáveis: por exemplo, há quatro semanas as expectativas para 2008 e 2009 eram de, respectivamente, 4,41 e 4,30%. Uma contração monetária nesta situação somente se justificaria caso a banda de flutuação fosse assimétrica para baixo. Mas ela não é.

O Conselho Monetário Nacional (CMN) delega ao BC o cumprimento não de uma meta pontual, mas definida como um intervalo de variação para o IPCA de mais ou menos dois pontos percentuais. Perseguindo uma inflação abaixo do centro da meta, o BC estaria violando um preceito básico do regime de metas de inflação: a autoridade monetária tem independência de instrumentos, mas não de objetivos. Isto é, o BC tem liberdade para definir o patamar da Selic que considera compatível com uma meta, que não cabe só a ele definir, e sim a um colegiado formado por seu presidente e os ministros da Fazenda e do Planejamento, o CMN.

Trata-se de perigosa distorção do mandato do BC. Isso compromete ainda mais a já precária coordenação da política econômica, cindida entre o conservadorismo agressivo do BCB e os tímidos anseios desenvolvimentistas da Fazenda.

Além disso, cabe destacar que os cortes de juros (de 3 pontos percentuais) já feitos pelo Fed ampliam o potencial de valorização do real frente ao dólar, resultante do aumento do spread soberano. Se a Selic subir ainda mais, esse diferencial se ampliará, anulando o efeito do IOF sobre as entradas de capitais de curto prazo. Aí, sim, o dólar vai derreter, sepultando de vez a ilusão da eliminação da vulnerabilidade externa da economia brasileira.

O quadro acima traçado, somado às incertezas quanto ao desfecho da crise das hipotecas de alto risco nos EUA, impõe a necessidade de cautela na condução da política monetária. Neste momento, o mais prudente seria manter a Selic. Sua elevação implica a imposição de um desnecessário viés deflacionário à economia brasileira. Não parece apropriado mirar o limite inferior da meta de inflação.

André de Melo Modenesi é pesquisador da Diretoria de Estudos Macroeconômicos do Ipea e doutorando do IE/UFRJ.

Miguel Bruno é coordenador do Grupo de Análise e Previsão da Diretoria de Estudos Macroeconômicos do Ipea.

Salvador Werneck Vianna é pesquisador da Diretoria de Estudos Macroeconômicos do Ipea.