Título: Falta de carne ameaça patrimônio italiano
Autor: Moreira , Assis
Fonte: Valor Econômico, 10/04/2008, Especial, p. A12

Emilio Rigamonti, o "imperador da bresaola", revela que negocia a criação de uma joint venture com o frigorífico Bertin Emilio Rigamonti, o "imperador da bresaola", planeja algo que nem imaginava até recentemente: começar a produzir no Brasil essa especialidade gastronômica com marketing focado em qualidade e características exclusivamente "Made in Italy". Rigamonti revelou, em entrevista ao Valor, que negocia uma joint venture com o grupo Bertin, um dos maiores frigoríficos brasileiros de carne bovina, para produzir a bresaola. A decisão deve-se à atual restrição da Europa à carne in natura brasileira por conta de problemas no rastreamento do gado, o que afeta a produção de bresaola na Itália.

"Precisamos de parceiro que dê garantia de fornecimento da carne bovina dessa qualidade, que a Europa não tem", explicou em seu escritório na sede da empresa que tem 105 anos, nos pés dos Alpes. "Com fábrica no Brasil, podemos também resolver problemas nos EUA e no Japão", acrescentou, com os olhos direcionados para um quadro na parede retratando vacas num pasto.

Para o Bertin, a vantagem é agregar valor à sua carne e ter acesso a mesas refinadas com um produto típico italiano ao lado do presunto de Parma, por exemplo. No mercado de carnes na Europa, é dado como certo que o Bertin já controla mais de 30% da Rigamonti. Os dois lados, frente a frente, negaram, mas insistiram que o "namoro está maduro". Rigamonti, de 77 anos, deixou claro, entretanto, que quer manter o controle de seu negócio, que faturou mais de ? 120 milhões de euros no ano passado.

Já o ministro de Agricultura da Itália, Paolo de Castro, aparentemente ignorando os planos da Rigamonti, primeiro rejeitou a possibilidade de produção no Brasil. "Bresaola só pode ser feita aqui nessas montanhas, neste clima", afirmou ontem durante visita ao centro de produção na região de Valtellina, nos Alpes italianos, a duas horas de Milão. Na medida em que falava e observava Rigamonti imóvel e calado, o ministro desconversou: "Bom, ele pode até produzir no Brasil, mas aí não tem a etiqueta do produto típico".

A bresaola autêntica tem a etiqueta IGP (Indicação Geográfica Protegida), garantindo ao consumidor que é produzida na zona especializada e com determinadas características. A bresaola é um produto cru originário de carne bovina, de um avermelhado intenso, temperado com muitas especiarias, e servido em fatias finas. Surgiu no século XIII como uma forma de conservar a carne bovina.

A expansão ao exterior, que exigiu produção em larga escala, só começou em 1980, depois que os 15 produtores italianos de bresaola começaram a importar carne de zebu do Brasil, considerada mais adequada por ter menos gordura. Em 2007, a produção total da Itália foi de 17 mil toneladas, das quais 50% feitas pela Rigamonti. Cerca de 12% é exportado. O faturamento total do setor foi de 230 milhões de euros em 2007.

É antiga a relação de Emilio com o Brasil, que visita o país duas a três vezes por ano. "Quando fiz a primeira importação [de carne] em 1970, de 40 toneladas, meu pai perguntou onde a gente iria arranjar dinheiro para pagar", conta. Na época, o quilo de coxão mole brasileiro chegava à Itália por US$ 0,25.

"Agora o preço explodiu, [isso] quando aparece carne", reclama. Desde o fim de janeiro, quando a restrição européia começou, quem tinha estocado carne brasileira na Europa passou a cobrar 50% a mais, com o quilo do produto pulando de ? 6 euros para ? 9 euros. A solução foi importar um pouco da Irlanda. Mas Rigamonti deixa claro que não há comparação entre a carne brasileira magra e a do gado europeu gordo para produzir a bresaola.

"É um contra-senso, uma loucura, segurar a produção", diz, abrindo os braços. "Estou rezando toda manhã para não terminarmos em muito prejuízo. Felizmente, não demitimos ninguém ainda", diz. A bresaola parece ser vítima de todo tipo de confusão comercial. É produzida com carne brasileira, mas a Itália não pode exportar para o Brasil porque Brasília interdita a entrada de produtos com carnes européia por causa da doença da "vaca louca".

O mercado está fechado também nos Estados Unidos, que representava 20% do total exportado, e também o Japão. Rigamonti mandou fazer uma pesquisa e confirmou que o Brasil pode exportar produto como bresaola para os EUA e Japão. É nesse cenário que o executivo tem a solução para o problema de abastecimento da carne e das barreiras. Está pronto um protótipo de fábrica para o Brasil, num projeto estimado em US$ 400 mil.

A idéia é de, mais tarde, construir a fábrica inteira, o que custaria vários milhões de dólares. Carlos Dantas, representante do Bertin, aposta no ganho tanto com o menor custo de mão-de-obra no Brasil como o que virá do valor agregado. Basta ver que o quilo do coxão mole do Brasil sai por cerca de ? 3 euros(o importador paga o dobro por causa dos impostos), enquanto o quilo da bresaola sai da fábrica por ? 18 euros.

A publicidade diz que o clima da Valtellina é o principal segredo que caracteriza a produção da bresaola na região. Na verdade, uma visita mostra que hoje a produção nos Alpes utiliza os melhores equipamentos, e a mercadoria pode ser feita tanto aqui como no Brasil.

Cerca de 80% da bresaola é feita a partir de dois cortes brasileiros: coxão mole e lagarto. Passam por salgamento por 15 dias, outros 15 de enxugamento em câmara fechada, 30 dias para maturação. As outras etapas conduzem à transformação do coxão mole na bresaola "punta d'anca", a mais cara. O quilo custa cerca de ? 35 euros no varejo. Para produzir bresaola, a Itália importou 25 mil toneladas de carne bovina em 2007. Cada quilo de carne resulta em meio quilo de bresaola.

Às 11 horas da manhã de uma segunda-feira cinzenta, Rigamonti interrompeu o trabalho para assistir na TV Raí Uno a um programa que falaria da bresaola. Paola Dolzadelli, secretária da Associação dos Produtores de Braseola, também está presente. Foi ela quem representou o segmento no programa, gravado dias antes. Há um suspiro de alívio quando o programa mostra a foto de um boi zebu. "Ainda bem que eles mudaram, a outra era horrível", diz ela. "Não se deveria falar em zebu, é um nome azarado em italiano, confundem com belzebu", diz Emilio.

O apresentador indaga como é possível a bresaola ter indicação geográfica se é produzida com carne brasileira. Paola dá uma explicação elíptica, defende o produto brasileiro, foca na qualidade do pedaço do músculo especial do zebu -e como na tevê, tudo é rápido, o apresentador passa logo para outro aspecto. Quando o programa termina, vinte minutos depois, Rigamonti e os outros elogiam Paola pela atuação na tevê. "Pelo menos uma boa notícia", suspira.