Título: Lucro sustenta arrecadação acima do PIB
Autor: Watanabe , Marta
Fonte: Valor Econômico, 14/04/2008, Brasil, p. A4

Mesmo sem elevação de tributos ou uso de fontes extras de receitas relevantes, a Receita Federal retomou, desde 2004, uma elevação de arrecadação que ultrapassa o crescimento do PIB. Nos últimos quatro anos, a arrecadação da União aumentou de 22,2% para 25% do PIB - crescimento que chega a quase um ponto percentual ao ano. A façanha concentrou-se no âmbito da União, já que, de forma global, a arrecadação de Estados e municípios se manteve estável em relação ao PIB, passando de 10% para 10,3% no mesmo período, segundo cálculos do especialista em contas públicas, Amir Khair.

O feito de aumentar arrecadação sem elevar impostos ou ampliar a base de cálculo é creditado por especialistas ao aumento da lucratividade das empresas que, na média, tem crescido acima do PIB. O aumento da margem de lucros alavancou nos últimos anos a arrecadação do Imposto de Renda (IR), tributo que anteriormente havia perdido espaço dentro da arrecadação total da Receita Federal. De 2004 a 2007, a participação do IR na arrecadação aumentou de 34,58% para 37,13%, num movimento que praticamente ocupou o espaço deixado pelo PIS/Cofins, cuja fatia recuou de 33,23% para 29,9% no mesmo período.

O PIS e a Cofins foram exatamente os tributos cuja arrecadação mais cresceu no período anterior, como resultado de mudanças na forma de cálculo. A última delas foi a implantação da não-cumulatividade e da cobrança nas importações, o que incluiu a elevação de alíquotas de 3,65% para 9,25%.

Dentro do avanço do IR, chama a atenção a evolução do IR recolhido pelas empresas. Tomando os dados de 2004 como base 100, o IR das empresas cresceu 1,78 vez, e a arrecadação total, 1,44 vez. Em 2004, o valor de IR recolhido pelas empresas foi 23,8% superior ao retido dos salários, relação que cresceu para 64,9% no ano passado - até 2001, por exemplo, o valor total arrecadado com o IR das empresas era menor que o do IR retido sobre salários. O crescimento da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) - calculada sobre o lucro - subiu 1,68 vez, também acima da média.

Para Khair, a "virada" no IR das empresas demonstra que o crescimento da arrecadação nos últimos foi ancorado pelo aumento de lucratividade. "A arrecadação aumenta mais que o PIB pelo aumento dos lucros e da renda, itens que escapam ao cálculo do PIB", diz o economista.

"É o que se chama elevação de carga tributária sem aumento da pressão fiscal. Ou seja, sem elevação de alíquotas ou base de cálculo", diz o ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel. Para ele, a explicação para o desempenho da arrecadação está nitidamente concentrada numa lucratividade que cresce em ritmo mais vigoroso que a produção medida pelo PIB. Segundo levantamento da Serasa, entre 2004 e 2007 a indústria acumulou lucratividade de 32%, e o setor de serviços, de 34%. Na média dos setores de indústria, comércio e serviços, a elevação foi de 27%. No mesmo período, o crescimento acumulado do PIB foi de 19%.

A economista Cláudia Dionísio, do IBGE, considera natural um descolamento entre arrecadação e PIB. Segundo ela, o PIB não reflete a lucratividade das empresas. "O PIB mede produção e não contabiliza custos. A produção é medida em volume. Só se sabe se ela aumentou ou diminuiu. Não se sabe se houve maior ou menor lucro."

Nem mesmo os sucessivos lucros dos bancos nos últimos anos entram no PIB, explica Cláudia. O "produto" gerado pelos bancos, diz, entra no PIB medido pelo nível de serviços contratados, o que inclui seguros, previdência privada e até empréstimos. "De novo, não se mede o lucro obtido, mas apenas o volume de serviços oferecidos. Para isso usamos uma cesta de tarifas e descontamos a inflação."

Na arrecadação de IR das empresas, o imposto pago pelas instituições financeiras impressiona. Tomando 2004 como base 100, o IR das financeiras aumentou 2,19 vezes contra 1,44 vez da média de arrecadação. A CSLL paga pelo segmento financeiro foi o tributo com maior elevação no período, com crescimento de 2,23 vezes.

Os dados da Serasa - com base em 1.600 empresas da indústria, comércio e serviços - mostram uma tendência de aumento de lucratividade média desde 2003. A margem líquida média da indústria pulou de 5,8%, em 2003, para 10,1% no ano passado. A do setor de serviços, de 5,1% para 11,9%. Entre as companhias abertas, o salto foi maior ainda, de 6,34% para 11,9%, segundo a Economática.

Para o professor de economia da FGV-SP e da PUC-SP, Nelson Marconi, um aumento de lucro das empresas em nível superior à atividade econômica pode impulsionar a arrecadação. Ele diz, porém, que, se não houve aumento de alíquotas, uma parte do desempenho deve ser creditada à fiscalização.

O ex-secretário Maciel concorda com o efeito da fiscalização, porém de forma mais limitada. "Os efeitos de um maior controle da Receita sobre as empresas não se restringem a um único tributo, mas afetam de forma generalizada toda a arrecadação. O crescimento do Imposto de Renda nesse período e nesse patamar não pode ser explicado por fiscalização."

O advogado Paulo Vaz, do Levy & Salomão, que representa empresas em discussões tributárias, concorda que no atual quadro de relativa estabilidade de normas sobre impostos, é possível creditar ao aumento de lucratividade a elevação da arrecadação. Ele lembra que a queda das taxas de juros e a valorização do real reduzem os custos das grandes multinacionais, porque geram despesas menores com juros. "Isso afeta diretamente o IR a recolher, porque são despesas que reduzem menos o lucro tributável." Para ele, a economia também propiciou a formalização de empresas e a abertura de capital, o que eleva o recolhimento do IR.

Os dados da Receita mostram que os lucros das grandes companhias ganharam participação no recolhimento do IR. Em 2003, as empresas que pagam pela sistemática do lucro real eram responsáveis por 67,43% da arrecadação do IR das pessoas jurídicas. Em 2007, a fatia subiu para 72,1%. Maciel lembra outro fator que pode alavancar ainda mais o IR. "A continuidade desse quadro deve contribuir para reduzir o estoque de prejuízos fiscais acumulados, gerando arrecadação maior sobre lucro", diz. A legislação permite que prejuízos de períodos anteriores sejam usados para reduzir o lucro tributável no cálculo do IR e CSLL.

Mesmo que a lucratividade seja a grande explicação para o aumento da arrecadação nos últimos anos, diz Marconi, a carga tributária está alta. Se as empresas estão pagando mais imposto porque lucram mais, lembra, parte desses ganhos poderia ser reinvestida em vez de virar tributos. "De qualquer forma, mantém-se a necessidade de corte de despesas pela União, principalmente em custeio."