Título: O protecionismo ilusório da MP nº 413
Autor: Deffenti , Fabiano
Fonte: Valor Econômico, 14/04/2008, Legislação & Tributos, p. E4

Uma falsa promessa de medida protecionista vem trazendo perplexidade desde o começo deste ano. Quando editada, a Medida Provisória (MP) nº 413, de 2008, incluiu em seu artigo 2º a possibilidade de aplicação de uma alíquota específica de R$ 10,00 por quilo no cálculo do Imposto de Importação, em substituição à alíquota "ad valorem", para determinados produtos que vão de sapatos a têxteis.

À primeira vista, pode parecer uma boa idéia. Afinal de contas, será mais fácil para a autoridade fiscalizadora ter um valor fixo por unidade da mercadoria, tornando independente das declarações de preços manifestadas pelo importador, muitas vezes falsas. A indústria nacional também exultou, com a esperança de que a medida possa servir no combate ao subfaturamento, mas também como reação ao dumping e como mecanismo de proteção contra os baixos preços relacionados a produtos importados, sobretudo em uma época de dólar declinante. A mobilização da indústria nacional em favor da medida tem sido visível nos jornais, sobretudo nos setores que não foram incluídos ou que estão sendo diretamente afetados por importações do Mercosul.

Mas, na realidade, a medida já causou um cisma dentro do próprio governo quando de sua concepção. A Receita Federal, genitora da medida heterodoxa, havia incluído o texto na Medida Provisória nº 413 sem sequer consultar os demais órgãos do governo. Isto não é apenas uma questão política, mas também um vício procedimental, uma vez que a competência para a matéria de alterar alíquotas de importação e de exportação é privativa da Câmara de Comércio Exterior, composta por sete outros ministros.

Dentro do governo, a imprensa noticiou a oposição do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e do Ministério do Planejamento. Esses ministérios lembraram que a imposição de uma alíquota específica para o Imposto de Importação contraria radicalmente a posição negociadora brasileira na Organização Mundial do Comércio (OMC). Mais do que isto, o Brasil já fechou questão - com os demais membros do G 20 - quanto à necessidade de adotar somente alíquotas "ad valorem", uma vez que é no comércio de produtos agrícolas importados nos países desenvolvidos que mais existem alíquotas específicas.

Além do debate político dentro do governo, a medida suscita uma série de problemas técnico-tributários, como aponta, a seguir, este artigo. Em primeiro lugar, porque aqueles setores foram eleitos? Em segundo, como aplicar uma medida em reais, se o comércio internacional adota o padrão dólar em suas operações? Em terceiro, como retornar no tempo a uma alíquota "brasileira" se o Brasil está vinculado à tarifa externa do Mercosul?

-------------------------------------------------------------------------------- O Brasil se arrisca desnecessariamente a sofrer reclamações e retaliações nos foros internacionais --------------------------------------------------------------------------------

Ao lado destas dúvidas, o procedimento também indica que a medida será inócua, na melhor das hipóteses. Afinal de contas, nos setores nos quais não há imposição de Imposto de Importação não será possível aplicar a alíquota específica. Este é o caso do Mercosul e dos vários acordos preferenciais em vigor ou em negociação pelo Brasil. Desta forma, grande parte das importações dos principais parceiros comerciais do Brasil - da Argentina, por exemplo - não poderia ser afetada.

Também será inócua a aplicação da medida em relação às importações de qualquer país membro da OMC. Afinal, as regras da OMC são categóricas quanto à impossibilidade de imposição de tarifas que podem configurar barreiras além das tarifas consolidadas pelo Brasil em seus compromissos específicos. Ou seja, se o Brasil consolidou sua tarifa para têxteis a 35% "ad valorem", a alíquota específica não poderá ultrapassar este limite em cada operação individualmente considerada. Ou cada importador, ao comprovar o valor de sua operação, poderá exigir o abatimento proporcional no tributo. Caso contrário, haverá violação dos compromissos assumidos pelo Brasil. As únicas exceções seriam a aplicação de medidas antidumping ou a pré-existência de valoração aduaneira, mas para estas últimas medidas há procedimentos próprios, firmados na OMC, e não pode haver aplicação genérica por linha tarifária, como pretende a Medida Provisória nº 413.

Diante destas considerações, não é difícil prever qual poderá então ser o futuro desse imbróglio jurídico. O Brasil se arrisca desnecessariamente a sofrer reclamações e retaliações nos foros internacionais, tanto no Mercosul quanto na OMC - basta ver casos similares, em que medidas neste sentido foram adotadas pelo Chile e pela Argentina, para depois terem que ser revogadas, quando estes países foram réus na OMC. Na semana passada, o Panamá apresentou uma reclamação contra a Colômbia, também por medidas tarifárias excedentes.

Outra conseqüência previsível é que medidas judiciais imediatas afastarão uma afronta tão clara aos acordos internacionais firmados pelo Brasil - o que causaria uma enxurrada de processos, contribuindo ainda mais para a notória morosidade do nosso Poder Judiciário. Com efeito, o artigo 98 do Código Tributário Nacional (CTN) garante a prevalência dos tratados, inclusive sobre a legislação tributária posterior. Há poucas normas tão claras no ordenamento jurídico brasileiro garantindo a prevalência dos tratados, como reiteradamente já reconheceu o Supremo Tribunal Federal (STF). Na prática, os mandados de segurança liberarão as cargas importadas, independentemente da vontade dos protecionistas de plantão.

A norma da Medida Provisória nº 413 não contém nada além de uma ilusão. Sob a roupagem de uma norma protecionista está uma medida que não pode ser aplicada e que serve apenas para desgastar a imagem do Brasil como um rincão sul-americano onde prevalecia um mínimo de segurança jurídica.

Fabiano Deffenti é advogado habilitado em Nova York, Austrália, Nova Zelândia e Brasil e sócio do escritório Carvalho, Machado, Timm & Deffenti Advogados

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