Título: Fidelidade não conterá adesão de prefeitos
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 15/04/2008, Opinião, p. A14

Os quase quatro anos que separam o país de suas últimas eleições municipais são a prova cabal de que não se amadurece um sistema partidário por ordem judicial. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que condenou à perda de mandato os mandatários de cargos eletivos que mudarem de partido, teve pouco efeito sobre os prefeitos eleitos em 2004 - até porque o STF se manifestou apenas no ano passado sobre o assunto. A debandada foi geral. A base oposicionista, que elegeu cerca de metade dos prefeitos das 100 maiores cidades brasileiras, hoje governa apenas 25, metade das prefeituras conquistadas pelo voto, segundo dados da "Folha de S. Paulo" ("Oposição encolhe e perde espaço nas grandes cidades", 13/4, pág. A4).

Os eleitos em 2004, empossados em janeiro de 2005, mudaram sem ser incomodados até 2007. Os prefeitos que serão eleitos em 2008 já o serão sob a exigência do STF - pelo menos na fachada, terão que honrar o partido que os elegeu até o fim de seus mandatos. Mas dois fatos têm grande potencial de neutralizar a obrigação imposta pela Justiça e que teoricamente deveria manter o equilíbrio entre as forças partidárias depois do pleito, ou seja, evitar o rolo compressor dos governos estaduais e federal sobre os prefeitos eleitos.

O primeiro é a popularidade do governo federal, alimentada por uma conjuntura econômica particularmente favorável e por programas sociais de forte impacto local. Como em 1996, no auge da popularidade do governo tucano de Fernando Henrique Cardoso e do Plano Real, quando o PSDB disseminou prefeitos pelo país afora, e da mesma forma como em 2004, quando o PT obteve o seu melhor resultado numa disputa municipal, é de se imaginar um efeito Lula no resultado eleitoral. A oposição já entra nas eleições em desvantagem. Pode encarar o rolo compressor já nas urnas.

A outra realidade que depõe contra os propósitos do STF de "moralizar" a vida partidária é a pouquíssima organicidade das legendas. Mesmo que cumpram a determinação do STF na aparência, os prefeitos podem aderir ao governo estadual ou federal informalmente. Prefeitos "chapas-brancas" existiam antes mesmo de o STF obrigar a fidelidade. Não é sempre interesse do prefeito deixar a legenda para o qual foi eleito porque localmente ela é uma reserva de poder, mas está longe também ser vantajoso para ele comprar briga com o governador ou com o presidente da República. Quando um presidente que não é do partido do prefeito é muito popular, a tendência é o candidato municipalizar sua campanha eleitoral, distanciando-se das instâncias regionais e nacionais de seu próprio partido. Quando a relação com o governo federal significa, além de votos imediatos, verbas futuras para obras, a linha programática do partido nacional dilui-se ainda mais.

O descompromisso partidário, contudo, não é uma invenção dos prefeitos. As direções nacionais mantêm uma relação frouxa com as bases municipais e regionais do partido. Em regra, as intervenções dos diretórios nacional e estaduais nas escolhas dos candidatos municipais privilegiam personalidades locais com chances de vitória e muito raramente favorecem aqueles com militância partidária e compromisso programático com a agremiação política a que pertencem. Assim, não é de se estranhar que, quanto mais próximo um novo pleito, menos prefeitos oposicionistas existam. E não é de causar espécie o fato de que, em 2006, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha contado com a adesão de vários prefeitos de partidos oposicionistas que sequer se deram ao trabalho de mudar de legenda.

As eleições de 2008 vão acabar como mais uma mostra da grande inventividade política brasileira. Setores da sociedade consideram que os partidos podem adquirir substância se a eles forem impostas regras rígidas. Como o funcionamento partidário não consegue corresponder a essas exigências, o eleito, e até o próprio eleitor, acabam dando um "jeitinho" de contornar a regra. Depois das eleições de 2008, provavelmente as estatísticas dos prefeitos por partidos não sofrerão grandes alterações até o pleito seguinte, em 2012. O desafio vai ser fazer uma estatística apontando que prefeito, independente do partido, continua sendo oposição de fato a um governo federal forte e que tem dinheiro para beneficiar os municípios.