Título: Assimetria nas metas de inflação
Autor: Prado , Antonio
Fonte: Valor Econômico, 15/04/2008, Opinião, p. A14

Narciso morreu afogado, apaixonado pela própria imagem refletida sobre a superfície da água. Uma tragédia sempre à espreita do banqueiro central, por seu zelo extremado com sua reputação junto ao setor financeiro. Se perder sua credibilidade, de pouco adiantaria sua linguagem cifrada nas atas dos comitês de política monetária, lidas pelos criptólogos do mercado financeiro com esmero de ourives. Estes mesmos recomendariam às suas tesourarias o enfrentamento da autoridade monetária enfraquecida, sem trégua, ao perceberem seu estado suscetível.

Mas a reputação de falcão da inflação, sancionada por uma política eficaz em seu combate e redução, pode trazer problemas se não for gerenciada com sutileza. Se o banqueiro central, como observador e ator privilegiado da economia, sentado em terabytes de informações, em modelos econométricos sofisticados, com credibilidade forte, sinalizar riscos relevantes no cenário inflacionário, em função de descompassos entre oferta e demanda, poderá ele mesmo provocar esse hiato.

Monitorar os riscos é sua obrigação permanente. Divulgar seus indicadores é necessidade da política de metas. Valorá-los, nem tanto. Palavras como moderada, intensa, significativa, relevante ocupam seu lugar no jargão dos BCs, mas a palavra "ainda", não deveria preceder uma expectativa formada pelo mercado. No último Relatório de Inflação do Bacen do Brasil está escrito que o IPCA-12 meses esperado para o primeiro trimestre de 2010 é de 4,7%, porque a expectativa para aquele ano "ainda" é de 4%. O mercado financeiro projeta 4,7% para 2008, 4,8% para 2009 e 4,7% para 2010.

O banqueiro central parece alertar que o mercado está lento na correção de suas estimativas. A inflação tende a ser superior ao esperado. Pode ser apenas um uso infeliz da palavra "ainda" pelo redator do Relatório. Mas isso gera o chamado efeito espelho. O Banco Central observa as expectativas de inflação do mercado para fixar sua política e o mercado observa as expectativas de inflação do Banco Central para fixar suas estimativas. Neste caso, a política de metas de inflação torna-se inócua.

O empresário, que vai decidir se amplia sua capacidade produtiva ou não, fica envolvido em um ambiente ainda mais incerto. Não apenas porque nunca sabe qual o fluxo de demanda que terá no futuro sancionando seu investimento, mas porque não sabe se a política monetária irá valorizar mais seu investimento produtivo ou sua poupança financeira. Se o banqueiro central diz que há um persistente descompasso entre demanda doméstica e oferta, e sua reputação é de inflation killer, o que significa que logo subirá os juros, o empresário se recolhe e a oferta de fato torna-se inferior à demanda. Um impasse macroeconômico.

As margens de tolerância na política de metas existem justamente para absorver eventos adversos de curto prazo que pressionam a inflação para cima ou para baixo. A detecção de que a pressão sobre os preços é difusa e persistente é crucial para que haja mudanças na taxa de juros. A pressão sobre os preços nos últimos meses ainda não pode ser caracterizada como persistente e difusa. E se há alguns sinais neste sentido, a meta central da política só foi ultrapassada 10 pontos básicos (0,1%) e há 200 pontos básicos de tolerância (2%). O mercado prevê que o desvio será de no máximo 0,2% ao ano até 2010. Nada mal. E com taxas de juros nominais declinantes. Mas isso foi antes do alerta da autoridade monetária.

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O descompasso entre oferta e demanda é de curto prazo? No que se refere à oferta doméstica, é o que parece. A formação bruta de capital fixa (FBCF) , medida pelo IBGE, tem crescido a um ritmo duas vezes superior ao crescimento do PIB. Argumenta-se, corretamente, que o investimento tem um caráter dual, isso significando que expressa um aumento da capacidade produtiva e da demanda agregada ao mesmo tempo. E que o aumento da demanda emerge imediatamente e o da capacidade produtiva, não. É fato, é uma variável que denota dois fenômenos econômicos.

Mas também é fato que a grande maioria dos investimentos no Brasil amadurecem no prazo máximo de um ano, ampliando a demanda agregada e a capacidade produtiva com defasagem irrelevante. Os outros investimentos, de maturação mais lenta, também são feitos para entrarem em operação gradualmente. Apenas no caso de grandes obras, como hidroelétricas, usinas nucleares, por exemplo, é que as obras geram muitos gastos antes de acrescentarem capacidade produtiva relevante.

No entanto, mesmo que os investimentos estivessem concentrados em grandes obras, o que não é ainda nosso caso, há US$ 190 bilhões em reservas internacionais disponíveis para garantir importações, até que o aumento da capacidade produtiva se realize.

Deve-se monitorar nos próximos meses os indicadores de capacidade ociosa, a relação crescimento da FBCF e crescimento do PIB, a capacidade de importar, os preços das commodities, o câmbio, para verificar se há uma luz amarela para a inflação.

É bom lembrar que tanto a inflação esperada como a inflação observada ficaram abaixo da meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) por mais de 18 meses, no período de 2006 a 2007. Não é adequada a adoção de uma assimetria nas margens de tolerância, aceitando-se o desvio para baixo mas não o desvio para cima. Não se deve ficar muito tempo longe do centro da meta, para além do erro estatístico aceitável, mas alguns meses de observação paciente são cruciais, no atual momento, para não desanimar o ímpeto empresarial com os investimentos que demorou décadas para emergir com força.

Antonio Prado é economista, doutor pelo IE-Unicamp, professor do Departamento de Economia da PUC-SP (licenciado), foi coordenador da Produção Técnica do Dieese nos anos 90 e é hoje responsável pela Representação do BNDES em Brasília.