Título: Já surgem em Cuba os emergentes do socialismo
Autor: Uchoa , Rodrigo
Fonte: Valor Econômico, 15/04/2008, Especial, p. A16

Júlio Ruiz se encosta na cerca para mostrar com orgulho três vacas leiteiras. "Elas produzem três vezes mais do que as da cooperativa estatal que fornece leite para Pinar del Rio [província no oeste de Cuba]." Um senhor de 54 anos, queimado de sol, Ruiz se mostra otimista: "Se me deixarem comprar equipamentos e eu puder cultivar mais terras, posso dobrar a produção de tabaco já no ano que vem, mas isso não quer dizer que vamos abandonar os avanços da Revolução", diz.

Desde a posse de Raúl Castro na Presidência, em fevereiro, o regime vem se dobrando à realidade e introduziu uma série de medidas para favorecer modos de iniciativa privada, com o objetivo de aumentar a produtividade.

Isso começa a beneficiar um grupo só agora reconhecido de fato: o dos emergentes do socialismo. Entre eles se destacam os pequenos agricultores e os trabalhadores na indústria do turismo, que têm mais acesso a moeda forte.

A trajetória de Ruiz, gestor de uma das 250 mil fazendas familiares de Cuba, mostra também os percalços da economia de seu país. Ele se exibe falando um alemão fluente e citando palavras em tcheco e polonês, línguas aprendidas na década de 80, quando foi enviado para estudar produção têxtil no Leste Europeu. "Em 1993, a tecelagem em que eu trabalhava fechou. Eu e minha família chegamos a passar fome. Vir para as terras de meu pai foi a nossa única alternativa à época."

Ruiz se refere ao que o governo cubano chama de "período especial". Com o fim da União Soviética, em 1991, e a desintegração dos regimes comunistas do Leste Europeu, Cuba perdeu de uma hora para outra seu principal fornecedor de petróleo e seus principais mercados de exportação. Os subsídios soviéticos para a produção cubana, que em 1990 foram de cerca de US$ 5 bilhões, evaporaram. Naquele ano de 1993, citado por Ruiz, a produção da indústria leve cubana teve queda de 70% em comparação com a média dos anos 80.

Sem o petróleo soviético, os apagões na rede elétrica se tornaram constantes. O desabastecimento foi generalizado, sendo que "ir para o campo se tornou atrativo, pois, ao menos, havia maior acesso a alimentos básicos", diz o consultor António Miranda, economista pela Universidade de Miami. "Mesmo assim, a produção agrícola continuou sendo majoritariamente estatal e, mais ainda, ineficiente."

Segundo Orlando Lugo, presidente da Associação Nacional de Pequenos Agricultores, a falta de equipamentos e os entraves burocráticos para conseguir insumos agrícolas impedem ganhos de produção. Ele dá como exemplo o caso de uma cooperativa privada que usa um antigo trator, mas não consegue comprar pneus novos nem recauchutados. Com isso, diz ele, a cooperativa perde diariamente 200 litros de leite. Júlio Ruiz reclama da dificuldade de comprar uma simples enxada.

As reformas implementadas por Raúl Castro pretendem incentivar a produção rural com gestão privada, como forma de diminuir as importações de alimentos. Segundo uma estimativa oficial, Cuba importa US$ 1,5 bilhão anualmente em gêneros alimentícios.

Isso ocorre num país em que 51% das terra cultiváveis estão ociosas ou são exploradas de forma insuficiente. São 3,5 milhões de hectares cultiváveis da ilha, sendo que 32,6% pertencem a pequenos proprietários ou a Cooperativas de Produção Agropecuárias (CPA), 42% pertencem às Unidades Básicas de Produção Cooperativa (UBPC, cooperativas em terras estatais) e, o restante, a estatais.

Dos 11,2 milhões de cubanos, 8,4 milhões vivem em zonas urbanas e pouco mais de 2,7 milhões no campo. Entretanto a geração de Ruiz, que viu no campo uma alternativa aos tempos difíceis do "período especial", passa por uma "crise de sucessão". Os mais jovens tentam cada vez mais migrar para as cidades, segundo o Departamento Nacional de Estatística.

"Os entraves à produção são grandes. O que o governo vem fazendo [com as reformas] é simplesmente se dobrar à realidade", diz um economista ligado a uma agência estatal cubana, que pediu para não ser identificado.

As reformas vêm se tornando públicas aos poucos. Instituíram-se novamente lojas para que os agricultores pudessem comprar insumos, os preços que o governo paga pela produção serão revistos, os agricultores terão maior liberdade para escolher o que vão plantar e poderão pedir a cessão de terras públicas para aumentar a produção.

O mesmo ocorre nas cidades, onde uma série de reformas vão sendo divulgadas: os cubanos agora têm acesso a hotéis antes restritos apenas a turistas estrangeiros; podem comprar celulares, aparelhos de DVD e computadores; não estarão mais sujeitos a tetos salariais, podendo ganhar mais, de acordo com a produtividade; e terão facilidades para comprar imóveis.

Em Havana, muita gente vê essas mudanças com otimismo, mas é difícil ouvir alguém dizendo que as reformas são um sinal de que Cuba estaria no caminho para o livre mercado.

"Não estamos abandonando a Revolução. Estamos nos adaptando", diz Jesus, um cubano aparentando estar na faixa dos 40 anos e que aborda turistas em Habana Vieja, o centro histórico da capital cubana, tentando vender-lhes charutos "legítimos".

Jesus não diz seu sobrenome. Afinal, o que faz é ilegal. Mesmo assim, ele se diz "fiel revolucionário".

O "tom" de revolução permanente é uma constante na TV estatal. Os desenhos animados falam de personagens da história cubana lutando contra o imperialismo ou dão exemplos da educação e da solidariedade que libertam as crianças do trabalho infantil. Os clipes de música fazem sempre menção aos avanços da sociedade cubana. Imagens de Fidel Castro e de Che Guevara são uma constante nas escolas. "Aos que desafiam nossa revolução, respondemos com mais revolução", diz um cartaz em uma escola no centro de Havana.

A maior parte das pessoas com quem o Valor conversou nas ruas da capital cubana tem um vilão na ponta da língua: os EUA. O governo americano e o embargo comercial imposto há mais de quatro décadas são normalmente tidos como os grandes responsáveis pela pobreza do país, embora muitos reconheçam que mudanças internas são necessárias.

"É difícil definir se as pessoas acreditam mesmo na retórica ou se a repetem apenas por repetir. Aparentemente, os mais insatisfeitos com a situação política e econômica são os jovens recém-saídos da adolescência. Mas, por outro lado, a vontade desses jovens de deixar Cuba e procurar melhores condições de vida nos EUA não é diferente dos jovens do resto da América Latina, como os do Brasil, por exemplo", diz o consultor António Miranda.

Um engenheiro civil cubano, que trabalha na reforma de prédios públicos que estão sendo colocados para alugar para estrangeiros, reclama da falta de incentivo para produzir mais. "É claro que, se o salário fosse maior para aqueles que trabalham com vontade, a vontade de trabalhar seria maior", afirma.

O salário em Cuba é em média de 400 pesos cubanos. Como educação e saúde são gratuitas e os alimentos são subsidiados, ele dá para as despesas domésticas básicas.

Só que cada vez mais cubanos têm acesso ao peso conversível, o CUC, que vale 24 vezes mais do que o peso usado para pagar o funcionalismo e os produtores rurais.

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Entre esses privilegiados estão principalmente as famílias que têm membros trabalhando e mandando dinheiro de fora, principalmente dos EUA, e as pessoas que trabalham no setor de turismo.

Segundo uma avaliação conservadora da consultoria americana Bendixen & Associates, há cerca de 440 mil cubano-americanos que mandam para seus parentes na ilha cerca de US$ 150 numa média de sete vezes ao ano, o que faz com que Cuba tenha um fluxo de entrada de dólares de cerca de US$ 450 milhões anuais. Outras avaliações chegam a colocar esse total em mais de US$ 1 bilhão ao ano.

"São essas pessoas que podem comprar os celulares [recentemente liberados para os cubanos] ou hospedar-se em algum hotel de luxo", reclama o engenheiro. "A maioria de nós continuará a não ter acesso a isso."

Ontem, segundo agências de notícias internacionais, filas de centenas de pessoas se formaram em Havana para obter linhas de celulares. Os cubanos pagarão as tarifas máximas existentes atualmente, de 111 CUCs - 2.664 pesos cubanos ou cerca de US$ 120. Os contratos são pessoais, apenas para os maiores de 18 anos e só há celulares pré-pagos.

Mas não é só para esses pequenos luxos que servem os CUCs. Pequenos supermercados com produtos não subsidiados podem ser achados espalhados por Havana. Neles, há uma maior diversidade de produtos, desde vodca russa até leite em pó canadense. O leite em pó custa 10 CUCs, o saco de um quilo - ou seja, um único saco custa 240 pesos, mais da metade do salário médio pago pelo governo.

Para o governo cubano, o fluxo de moeda estrangeira vem crescendo nos últimos dez anos, mesmo apesar das restrições que o governo de George W. Bush impôs para o envio a partir dos EUA. Segundo Manuel Orozco, pesquisador do Diálogo Interamericano, o governo de Cuba embolsa 20% de todas as quantias enviadas pelos cubano-americanos, em parte por causa da taxa de 10% para o câmbio do dólar e em parte por causa dos impostos sobre as empresas que fazem as transferências.

Um outro modo de captar moeda forte é pelo fornecimento de mão-de-obra para empresas estrangeiras. Um exemplo: se uma empresa contrata um gerente para a sua filial cubana, ela pagará um salário de 1,2 mil CUCs para o governo, que, por sua vez, pagará 400 pesos cubanos para o funcionário.

E, claro, os turistas deixam cada vez mais dinheiro no país. Em 1989, apenas 270 mil estrangeiros visitaram a ilha caribenha; em 2007, foram mais de 2,4 milhões de turistas, vindos principalmente da Europa. Desde 1994, o turismo já se tornou uma fonte de renda mais importante do que o açúcar e, hoje, representa uma fonte de renda de US$ 2,5 bilhões.

A rede hoteleira espanhola Sol Meliá já administra 24 hotéis em Cuba e diz ter planos de expansão nas regiões de novo desenvolvimento turístico, como Cayo Coco e Cayo Largo. A Qatari Diar Real Estate Investment Company, do Qatar, começou a construir no ano passado um hotel cinco estrelas de 200 quartos nessa região.

Há mais de 300 mil cubanos trabalhando direta ou indiretamente no setor de turismo, tendo acesso a gorjetas e gratificações em moeda forte e gastando cada vez no mercado interno.

Mais do que isso, a boa-vontade do governo em atrair investimentos vem dando certo. A francesa Pernod-Ricard investiu ano passado em uma grande destilaria no país, para fazer o rum Havana Club, que produz em joint venture. A britânica Imperial Tobacco, que tem metade da fábrica de charutos Habanos, trabalha com perspectivas de expansão.

A canadense Sherritt International está investindo US$ 1,5 bilhão na mineração de níquel e na produção de gás e petróleo.

A China vem tentando garantir também seu naco no setor de níquel e na exploração de petróleo, o que fez com que uma linha de crédito para o governo cubano fosse aprovada em tempo recorde. Daí a explicação para a quantidade de ônibus chineses circulando no país hoje.

A brasileira Petrobras e a Cupet (Companhia Cubana de Petróleo) assinaram um acordo de cooperação nas áreas de exploração, produção e refino.

A Dubai Ports World está analisando a construção de um terminal de contêineres que seria erguido no país até 2012.

Entretanto a empresa que mais chama atenção para os que transitam pela beira-mar em Habana Vieja é a venezuelana PDVSA. Do outro lado do porto, uma refinaria recentemente reformada trabalha 24 horas por dia.

O regime cubano tornou-se dependente ao extremo da Venezuela e da amizade e boa-vontade do presidente Hugo Chávez. A Venezuela exporta para Cuba mais de US$ 7 bilhões por ano, sendo que grande parte disso é paga com os serviços de 40 mil médicos e técnicos cubanos no território venezuelano.

"Tomando por base esses valores, vemos que o principal produto de exportação de Cuba hoje são os médicos. Por uma ironia, isso acaba trazendo problemas para o governo, já que a população cubana está reclamando da falta de médicos em seu próprio país", diz António Miranda.

Aí entra a grande questão: as reformas são mesmo um caminho para a abertura mais ampla do país? Ou seriam apenas cosméticas, para manter o mesmo regime, apenas com um ar mais moderno?

O economista cubano que conversou com o Valor em Havana diz não crer em uma reviravolta muito grande do regime: "Não estamos vivendo uma situação nem de longe parecida com a soviética, na qual as gerações que participaram da Revolução de 1917 e as gerações imediatamente posteriores se encastelaram no poder e não deixaram espaço para os mais jovens. Hoje, todo o segundo e terceiro escalões do governo cubano - quando não no primeiro escalão - é formado por jovens de cerca de 40 anos. Gente que crê na revolução e quer melhorar o país, e não acabar com tudo o que construímos".

Miranda é mais cético: "Quando o Estado controla 90% da atividade econômica, não dá para dizer que essas pequenas reformas vão fazer mais do que embelezar uma ditadura que não larga o osso". "A visão muito comum entre os cubanos-americanos de Miami de que o regime vai desabar como um castelo de cartas no momento em que as maravilhas do capitalismo começarem a se espalhar pela ilha é resultado do pouco contato com a realidade cubana que a velha geração anterior a Fidel tem."

Para o agricultor Júlio Ruiz, entretanto, a perspectiva de aumentar sua produção de tabaco e de receber mais pelo leite de seu diminuto rebanho é mais palpável do que as análises prós e contra: "O que eu quero é que Cuba avance. Quero avançar também".