Título: Para mãos exímias
Autor: Machado, Antonio
Fonte: Correio Braziliense, 16/02/2011, Economia, p. 14

O país está passando por uma emergência, com a inflação aquecida pelo choque de preço dos alimentos e a pressão de demanda sobre os itens de serviços, o que a leva a se distanciar da meta anual de 4,5%, estando até janeiro com variação acumulada em 12 meses de 5,99%. Só que não há nenhum descontrole lato sensu.

De algum modo, tal resultado é até deliberado. Noutros tempos, o Banco Central já teria injetado 2 a 3 pontos percentuais na Selic desde as eleições de outubro, em vez de mantê-la em 10,75% até o fim do ano e só em janeiro elevá-la ¿ mas modestamente, segundo o seu histórico de atuação e a virulência da inflação ¿ a 11,25%.

O BC não passou como trator sobre a inflação não bem porque teria aderido ao diagnóstico de que as pressões inflacionárias correntes seriam pontuais e mais adiante se esvaziariam, o que pareceu fazer sentido no meio de 2010, com a distensão dos preços dos alimentos. Hoje, constata-se que esse julgamento foi uma ilusão da Fazenda.

Mas o BC se enquadrou ao entendimento implícito de que a política monetária não deveria inviabilizar o atual ciclo de investimentos, sobretudo o privado, muito sensível aos juros e a expectativas. Isso implica dilatar temporalmente a convergência da inflação ao centro da meta de 4,5%, já agora admitida nos cenários que emulam nos bancos e consultorias as projeções do BC como evento previsto só para 2012. O BC viria a agir com rigor máximo apenas no caso de a inflação ameaçar passar de 6,5%, estourando o teto da meta.

A condicionante do ciclo de investimentos direciona o sentido da política fiscal e monetária, assim, à contração da demanda devida a crédito bancário e aos gastos públicos ligados às transferências de renda, moldando diretrizes econômicas muito mais pragmáticas.

O aperto monetário, na prática, é maior que o percebido. Só que o BC, diferentemente de sua rotina ao longo dos últimos oito anos, sacou outras ações anti-inflacionárias. Espremeu o multiplicador do crédito bancário, aumentando a retenção compulsória dos depósitos, e impôs a alocação de mais capital no financiamento ao consumo.

Tais medidas têm equivalência, embora imperfeita, com o aumento da taxa Selic. Não se sabe de quanto, apenas se infere que o seu impacto contracionista sobre o consumo possa ser mais rápido que os juros. E mais localizado, conforme o propósito pretendido.

O arrocho localizado É a mesma lógica do corte de R$ 50 bilhões de gasto público, que foca as despesas de custeio dos ministérios, os seus programas e os investimentos ¿ em geral, paroquiais ¿ previstos pelas emendas de parlamentares à execução do Orçamento Geral da União (OGU).

Nesse mesmo saco estão os aumentos excepcionais de gastos na área social, como o derivado de um reajuste maior do que define a regra informal em vigor de correção do salário mínimo. O governo defende o valor de R$ 545, equivalendo a um aumento de 6,9% sobre o mínimo vigente em 2010, de R$ 510 ¿ pouco mais que a inflação anual. Mas sem incluir a variação do PIB de dois anos atrás, que foi negativa.

Preocupação uniforme Da atuação não convencional do BC ¿ ou, pelo menos, não ao gosto dos financistas e operadores acostumados ao padrão monotemático dos juros básicos ¿ aos cortes fiscais pela Fazenda, cujo ministro e assessores passaram os últimos anos negando que o gasto público tivesse influência sobre a inflação, há uma preocupação uniforme.

O cuidado é deixar de fora do ataque aos problemas da inflação os investimentos em obras de infraestrutura cobertos pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), incluindo os eventos associados à Copa do Mundo e às Olimpíadas. E com especial atenção aos projetos da iniciativa privada. Os programas sociais estão no mesmo patamar de preocupação, embora já estejam, por ora, razoavelmente atendidos.

Dólar fica como está A arte do ajuste em curso é isolar o investimento industrial e em obras de infraestrutura dos efeitos contracionistas, programados, em tese, para desacelerar a demanda fomentada pelo crédito e gasto fiscal de custeio, com tudo mais mantido constante. Até o dólar.

O provável, a esta altura, é que o governo o queira neutro, o que implica ao BC abrir mão da apreciação cambial como coadjuvante da Selic ¿ e à Fazenda, da depreciação como incentivo à exportação. É o que dá para fazer com o menor custo, inclusive político, já que, se tal arranjo for bem-sucedido, a inflação começará a desinflar. E agora com a política monetária podendo ir aos poucos desinflando também os juros básicos, se a reforma do custeio for permanente.

Contradição só em tese O desenho da prioridade anti-inflacionária só em tese, a ser como sugerem os formuladores do governo, contradiz os planos para o aprofundamento do ciclo de investimentos, conforme a intenção da segunda fase da chamada Política de Desenvolvimento Produtivo.

Ela se fará com menos juros subsidiados do BNDES, talvez até com menor alocação de recursos ¿ em coerência com o enquadramento da política fiscal às metas monetárias ¿, mas deverá contar com maior participação de capitais privados, com a maturação das medidas de incentivo ao financiamento de longo prazo, com fontes voluntárias aprovadas em dezembro. E há muito mais a fazer nessa direção.

No papel, o plano de voo é perfeito. E será, se o governo de fato cortar os seus gastos, e o empresariado mantiver alto o astral.