Título: Crise dos alimentos traz mais instabilidade global
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Fonte: Valor Econômico, 18/04/2008, Opinião, p. A12

Pela primeira vez desde a década de 1970, uma onda de fome se espalha por vários pontos do globo simultaneamente. Os protestos não ocorrem apenas na miserável África, mas atingem Vietnã e Filipinas, na Ásia, ex-províncias soviéticas, como o Cazaquistão, e países latino-americanos, como México. Ao contrário das crises de anos anteriores, não há nenhuma grande quebra de safra provocada por desastres climáticos de grandes proporções - a única exceção atual é o trigo. Desta vez, os próprios preços se abatem sobre os miseráveis e remediados do países em desenvolvimento com a força de calamidades naturais. À instabilidade econômica criada com a crise das hipotecas nos EUA soma-se agora princípios de instabilidade política em boa parte do planeta, fruto de uma situação que tem tudo para se tornar explosiva.

A alta dos preços dos alimentados é forte e disseminada a ponto de elevar os índices de inflação em todo o mundo. Na Europa, o nível de preços subiu 3,6% nos doze meses encerrados em março, uma taxa bem acima da faixa de 2% a 2,5% que poderia ser tolerada pelo Banco Central Europeu. Nos EUA, o índice de preços ao consumidor está em 4%, enquanto que chega a 8,3% na China, 12,7% na Rússia, 8,2% na Indonésia, 6,5% em Cingapura, 8,5% no Chile e 12,1% no Egito. As previsões de inflação média dos países emergentes subiram para algo em torno de 7% este ano. Quando examinada a inflação específica dos alimentos, os índices pulam para os dois dígitos. O trigo aumentou 77% no ano passado e o caso do arroz é dramático para os pobres da Ásia: ele mais que dobrou de preço no ano.

A reação dos governos diante da pressão de massas esfomeadas na rua, ou diante da possibilidade de tê-las em futuro próximo, foi a suspensão das exportações, a redução das tarifas de importação, o subsídio direto ao consumo ou o controle de preços. Nenhuma dessas medidas pode de fato resolver os problemas, mas simplesmente minimizá-los e reduzir, no curto prazo, as pressões políticas. Cresce o número de países que estão deixando de exportar produtos que compõem importante parte da cesta de consumo doméstica, atitude que, se generalizada, reduzirá o poder de formação de preços no mercado internacional e, provavelmente, tornará os produtos ainda mais caros e escassos. O controle de preços, que nunca funcionou muito bem, torna-se inócuo.

Há vários fatores em cena que, combinados, explicam a alta. O principal deles é o aumento vertiginoso das cotações do petróleo, hoje em torno de US$ 114 o barril e que não dá sinais de recuo. Segundo cálculos de consultorias privadas, os preços médios do petróleo este ano serão 20 a 25% superiores aos do ano passado. O choque de preços do petróleo encareceu brutalmente os fretes ao redor do mundo, os combustíveis utilizados nas lavouras e seus insumos, como os fertilizantes. A agricultura também sofreu um choque de custos.

Depois, centenas de milhões de pessoas foram incorporadas ao mercado de consumo pelo desenvolvimento econômico de China, Índia, Rússia e do Leste Europeu após o fim do comunismo. Além disso, o programa de produção de etanol à base de milho dos Estados Unidos, um dos maiores produtores mundiais de milho, trigo e soja, teve efeitos devastadores nas cotações. Por último, há a quebra de safras de trigo em produtores decisivos, como a Austrália.

Com a situação dramática, algumas teses neomalthusianas ressuscitaram, mas não devem prosperar. Não há escassez de comida, a agricultura passa por revoluções sucessivas e deu saltos significativos de produtividade. Nesta altura, é importante que o estímulo de preços chegue ao agricultor para que ele possa ampliar a área plantada dos produtos demandados. As próximas safras de trigo nos EUA e Europa serão maiores que as de 2007. A redução de barreiras tarifárias podem ter importante papel a cumprir, enquanto que entraves às exportações devem ser desestimulados. Políticas fiscais ativas, com redução temporária da tributação dos alimentos, têm um papel a cumprir. A "deterioração dos termos de troca" entre produtos agrícolas e industriais está sepultada para sempre. Houve uma mudança estrutural na economia mundial e a crise dos alimentos atual é uma de suas primeiras manifestações.