Título: Alta de alimentos desafia tendências globais
Autor: Lopes , Fernando
Fonte: Valor Econômico, 18/04/2008, Especial, p. A14

Mais do que refletir um desajuste entre oferta e demanda aprofundado pela onda dos biocombustíveis, o progressivo aumento dos preços dos alimentos ao redor do mundo deflagrou um debate global em torno do futuro das relações comerciais internacionais e da eficácia de modelos e técnicas de produção que se consolidaram a partir da revolução verde, que já comemora seu cinqüentenário.

Dessas discussões, acredita Rubens Ricupero, surgirão novos conceitos. E, à luz dos "complexos problemas" atuais, uma "multiplicidade de decisões" terá de ser adotada para resolvê-los, com efeitos sobre um rearranjo de forças econômicas já em andamento. "De certa forma", diz o diplomata, ex-ministro da Fazenda de Itamar Franco e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad), "é tranquilizador saber que isso vai acontecer".

Para Ricupero, diretor da Faculdade de Economia e Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) desde 2005, "vivemos o início de um fenômeno que compreendemos mal". Ele afirma que tem acompanhado de perto o desenrolar das polêmicas sobre a questão, sempre acompanhadas de diagnósticos e projeções, mas que sente falta de uma análise mais aprofundada sobre alguns fatores que, em sua opinião, podem mudar o rumo dos acontecimentos.

O primeiro ponto, atenta, é que "tudo o que se afirma é por aproximação". Não há, em sua visão, respostas empiricamente comprovadas para mensurar influências como os problemas climáticos que já castigam algumas regiões, o real vínculo entre os preços do petróleo e das commodities agrícolas, os subsídios energéticos em países desenvolvidos ou mesmo o tamanho da futura demanda de países como China e Índia, entre outros emergentes responsabilizados pela espiral inflacionária que chega a encarecer produtos que sequer consomem. Ricupero lembra, por outro lado, que preços de produtos como o açúcar, por exemplo, não estão em linha com a tendência geral de valorizações.

O segundo ponto levantado pelo diplomata diz respeito à relação entre oferta e demanda em si. Ele acredita que a velha máxima de que ambos sempre se encontrarão no futuro, em um equilíbrio regulado pelo mercado, pode estar com os dias contados, uma vez que há limitações físicas no horizonte. É o caso do petróleo, cuja oferta deveria estar mais abundante se dependesse apenas dos preços - elevados há pelo menos dois ou três anos -, mas que começa a encontrar limitações em países como a Rússia e que já declina no México e em outros produtores.

Menos badalada, a produção de fertilizantes encara cenário semelhante, até porque as matérias-primas derivadas do nitrogênio e que compõem os adubos vêm exatamente do petróleo. "As cotações do petróleo não voltarão mais [aos níveis anteriores à atual escalada], portanto o efeito dessa alta sobre os fertilizantes poderá ser permanente". No caso do potássio, outra importante fonte de nutrientes para a agricultura, as perspectivas de Ricupero são igualmente pessimistas, já que o produto é extraído de poucas minas e a expansão da oferta exige investimentos vultosos.

Ainda na relação entre oferta e demanda, afirma Ricupero, não se sabe ao certo até que ponto a produção de alimentos está sendo influenciada pelo já presente fenômeno do aquecimento global. A Austrália, lembra, vem de seis anos seguidos de seca, o que praticamente dizimou sua produção de arroz. Grande parte dos rizicultores do país vendeu os direitos que tinha para o uso de água e abandonou a cultura, transformando uma escassez conjuntural em definitiva.

Outra faceta do segundo ponto levantado por Ricupero envolve o acelerado processo de degradação e erosão de solos e os avanços tecnológicos necessários para corrigi-las. Proliferam-se estudos que mostram a queda das despesas dos governos com pesquisas agrícolas - no Brasil inclusive - e a concentração desses gastos em grandes multinacionais privadas.

Ricupero usa o gancho para entrar em uma seara que costuma provocar celeuma: o conflito entre o agronegócio e a agricultura familiar. "É preciso entender que a agricultura em larga escala não vai resolver a fome no mundo". Após as inúmeras visitas que fez pela Unctad a países pobres como Etiópia e Burundi, na África, ele está convencido de que "a verdade não está nos extremos", e que é "simplismo achar que todos os problemas podem ser resolvidos pela ciência". Por isso, defende a importância da agricultura familiar e cooperativista, além do estabelecimento de políticas específicas para populações que vivem em condições de insegurança alimentar.

"Em regiões como essas, talvez o agronegócio até tenha condições de gerar oferta. Mas quem teria dinheiro para pagar?", questiona. Ricupero observa que tradicionais grandes doadores globais de alimentos, como os EUA, reduziram muito as ajudas nos últimos anos. Quase em resposta ao diplomata, na quinta-feira mesmo Washington reforçou a promessa de liberar US$ 200 milhões adicionais em ajuda alimentar emergencial para países pobres como os africanos mencionados por Ricupero.

Outro movimento destacado pelo ex-secretário da Unctad é o da "comida zero quilômetro", produzida localmente, com menos tecnologia, para abastecimento de mercados locais. Os orgânicos normalmente entram nesse raciocínio - mas não apenas nesse, já que embutem um apelo de marketing interessante.

O terceiro ponto que começa a ser sacudido pelo aumento global dos alimentos é a política de liberalização do comércio agropecuário. "Toda vez que há uma súbita alta de preços e risco de escassez, como agora, a questão vem à tona". Ricupero considera que o auge da liberalização se deu entre 1880 e a primeira guerra mundial, quando as exportações de alimentos turbinaram o crescimento dos EUA e da Argentina, que chegou a representar a quarta principal força econômica do globo. Depois das duas guerras, porém, a auto-suficiência alimentar voltou à agenda.

Tanto que no fim dos anos 1950 nasceu na Europa a Política Agrícola Comum, pavimentando, diz o diplomata, o caminho para o surgimento da União Européia. A revolução verde e suas tecnologias, sobretudo fertilizantes e defensivos, amenizaram temores de desabastecimento e abriram espaço para a queda de subsídios e barreiras tarifárias, mas Ricupero se recorda que desde a Rodada Uruguai de negociações para a liberalização do comércio o argumento de que agricultura não é indústria e demanda um maior grau de controle está sobre a mesa.

Afinal, indaga, o que seria do "modo asiático de produção agrícola", com milhões de pequenos produtores ineficientes, com a liberalização total do comércio? E ele mesmo responde: "Esse pessoal seria simplesmente aniquilado".