Título: O Cade e a Justiça: preocupação real?
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 18/04/2008, Legislação & Tributos, p. E2

Muito se tem falado na seara concorrencial sobre o tema da judicialização das decisões administrativas proferidas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em matéria de legislação antitruste, alegando-se que tal movimento teria por propósito protelar ou mesmo inviabilizar o cumprimento das decisões daquele órgão. Mas seria o temor procedente ou o fato digno de legítima preocupação?

À guisa de reverberar contra a questão da morosidade da Justiça - fenômeno que atinge a todos, não apenas ao Cade -, busca-se induzir à conclusão de que o recurso ao Judiciário seria negativo à sociedade, com argumentos questionáveis que culminam com o apelo à soberania da administração pública sobre a independência do Poder Judiciário, com graves riscos para os fundamentos da República e para a segurança jurídica.

A judicialização, em verdade, deveria ser compreendida como a natural e desejada desembocadura da aplicação da legislação da concorrência, considerando-se que a independência do Poder Judiciário é garantia individual e coletiva contra os eventuais equívocos tanto dos poderes Legislativo e Executivo, como do próprio Judiciário. De fato, no país com maior experiência em direito da concorrência no mundo, os Estados Unidos, o processo decisório é inteiramente judicial, o que garantiu à sociedade americana a maior estabilidade conhecida da cultura da concorrência. O Judiciário é fonte de segurança de um sistema jurídico e sua atuação tem forte decorrência educativa - inclusive para o Cade.

Vale lembrar que, desde os primórdios, o Cade foi concebido como órgão auxiliar do Poder Judiciário, cabendo-lhe a prolação de decisões técnicas, sempre sujeitas ao controle judicial, tanto na forma como no fundo. Mesmo porque, dado o caráter administrativo, pautado pela informalidade relativa, não são pouco freqüentes no histórico punitivo do conselho reclamos das empresas, inclusive alegando a desconsideração de direitos subjetivos e processuais básicos e, por seu rigor técnico, o distanciamento de realidades de mercado. O diálogo com o Judiciário tem o condão preciso de estabelecer limites a este risco, quando ocorra.

Para avaliar melhor a questão, se de um lado as condutas anticoncorrenciais podem acarretar sérios danos à coletividade - e daí a essencialidade e a importância da atuação do Cade -, faz-se mister, por outro, perceber o contraponto. Assim, considere-se, por exemplo, que condenações com disparidade da realidade econômica vigente, desatentas aos procedimentos arregimentados no próprio conselho e aos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e da razoabilidade, além de reduzirem a legitimidade do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) perante a sociedade brasileira, podem ocasionar conseqüências desastrosas à economia. Citamos, entre outras, o repasse de valores de multas a preços e a redução de investimentos, de pesquisa e desenvolvimento (P&D) e de empregos, além da revolta do administrado face às sanções impostas - tem-se assim o efeito adverso da sanção, que, ao invés de desincentivar a infração, reduz a imperatividade do sistema jurídico.

Nestes casos, para o administrado, as pesadas sanções podem guardar aparente efeito arrecadatório, o que, por si só não as legitima. O "trade-off" é perverso, pois em contrapartida tem-se prejuízos em termos de perda de legitimidade das autoridades que tutelam a concorrência, efeitos deletérios à economia e desvirtuação dos objetivos da Lei de Defesa da Concorrência. Quanto mais desproporcionais as sanções e mais desatentos às regras processuais forem os procedimentos no âmbito do SBDC, mais recursos haverá - e é salutar que haja - ao Poder Judiciário.

-------------------------------------------------------------------------------- A chamada judicialização das decisões do Cade é um fenômeno natural e desejável e amparado na Constituição Federal --------------------------------------------------------------------------------

A livre concorrência não é finalística, mas antes instrumental de um bem maior, que é a livre iniciativa, sendo esta, pelo artigo 1º da Constituição Federal, um dos fundamentos da República. O interesse do órgão administrativo de que suas decisões não sejam questionadas, mesmo quando equivocadas ou ilegais, a título de ordem pública administrativa, não prevalece, nem poderia prevalecer, contra o princípio maior do interesse social.

Não se pode pretender que o Cade esteja acima do direito constitucional da inafastabilidade do Poder Judiciário. É inadmissível que se cogite imputar ao Judiciário qualquer pecha quando este concede liminares, amparadas nos severos requisitos do "fumus boni iuris" e do "periculum in mora", ou prolate decisões reconhecendo um bom direito do cidadão, merecedor de proteção acima do eventual afã intervencionista da administração - uma característica não distante da cultura brasileira.

Ao se afirmar que é de competência do Cade, insinuando ser ela exclusiva, o julgamento de questões concorrenciais no mérito, confunde-se conceitos estabelecidos, gerando um verdadeiro "ovo da serpente". Em primeiro lugar, o Cade não "julga", em sentido técnico, sendo esta uma atribuição do Judiciário. Em segundo, é preciso discernir quanto ao mérito administrativo, caracterizado pela oportunidade e conveniência da administração pública (são atos discricionários), e o mérito da causa, a questão jurídica de fundo.

As decisões técnicas proferidas pelo Cade não têm natureza discricionária. Caso contrário, estar-se-ia sujeitando a livre concorrência aos desígnios de oportunidade e conveniência da administração, risco inadmissível à liberdade econômica. Suas decisões, quanto à questão de fundo, têm cunho vinculado, isto é, estão adstritas aos parâmetros estabelecidos na lei quanto ao mérito da causa. São sempre sujeitas ao controle judicial.

Aliás, outra não poderia ser a solução, já que, por força de lei, as decisões proferidas pelo Cade não são passíveis de recurso no âmbito do Poder Executivo. Não podendo ser revistas mediante apelo hierárquico - o que é razoável, para evitar ingerências políticas e preservar a independência do conselho -, seria ofensivo ao princípio do duplo grau de jurisdição a extensão de tal imunidade ao próprio Judiciário, sob pena de se colocar o princípio maior da livre iniciativa sob risco. As decisões administrativas não gozam de maior dignidade do que as decisões judiciais, estas sempre sujeitas a recursos nos termos da lei.

Em outra ótica, em sistemas jurídicos onde o poder jurisdicional é exercido de forma una pelo Poder Judiciário - isto é, não há jurisdição administrativa como no Brasil - a revisão e correção, sob a perspectiva constitucional, das decisões de autoridades administrativas, quando incorporem atos administrativos vinculados, em nada prejudicam o bom funcionamento das instituições, mas sim fortalecem o processo civilizatório, erigido sobre as bases da legitimidade democrática, tomada em seu sentido nuclear, qual seja, o de aceitação social.

Em resumo: a chamada judicialização das decisões do Cade é um fenômeno amparado na Constituição Federal, sendo natural e desejável, não apenas para aprimorar a cultura da concorrência junto ao Poder Judiciário, como também por sua função educativa e, finalmente, por gerar segurança jurídica para a sociedade.

José Inácio Gonzaga Franceschini e Eduardo Molan Gaban são, respectivamente, sócio e advogado da área concorrencial do escritório Franceschini e Miranda Advogados

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