Título: Para negociar com os chineses, empresários têm aulas de etiqueta
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Fonte: Valor Econômico, 24/04/2008, Brasil, p. A9

Leonardo Rodrigues / Valor Leonardo Cuschinir, presidente da fábrica de pastilhas de freio Syl: busca de respostas para questões do dia-a-dia "Aaaaaaaaaaa. Ááááááááááááá. Ãããããããããã. Ááááá ãããããã áááá ". Um grupo de 30 pessoas tenta repetir esses sons. São 9h da noite de quarta-feira em um prédio na zona oeste de São Paulo. O professor explica que cada letra pode ser pronunciada em cinco tons diferentes. Se muda o som, muda o significado. O primeiro tom se prolonga até que a voz acabe. No segundo, a voz sobe e fica aguda. No terceiro, a voz sobe, desce e sobe de novo. O professor diz que é até aconselhável balançar a cabeça nesta pronúncia. O quarto tom é forte, o quinto é fraco. "Vamos praticar. Cantem comigo!", diz.

Não são alunos de um coral, mas empresários que se esforçam para aprender uma noção básica de mandarim. Ming Tsung Wu, do centro de idioma e cultura chinesa Nin Hao, explica que "b e p", "d e t", entre outras letras, têm praticamente o mesmo som em chinês. A única coisa que muda é se você coloca a língua entre os dentes e sopra. "Ni hao", ensina o professor, significa "Olá, tudo bem?". "Tài guì le!" é igual a "muito caro!" - expressão útil nos negócios. Na China, não adianta você dizer que é do Brasil, porque ninguém vai entender. A pronúncia correta é "Baxi".

O mandarim é um dos módulos do curso de "etiqueta empresarial" chinesa promovido pela Câmara Brasil-China de Desenvolvimento Econômico. O público é de executivos que já estiveram na China ou pretendem viajar em breve. No curso que ao Valor acompanhou, um empresário veio de Recife, outro de Goiânia. Além do idioma, os executivos aprendem história, questões práticas relacionadas a viagem e a compreender conceitos culturais. Esse último é, de longe, o tema que mais atrai interesse.

"A parte histórica é curiosa, mas não é útil", diz Leonardo Cuschinir, presidente da fábrica de pastilhas de freio Syl. Os empresários querem respostas para questões do dia-a-dia. Como se comportar em um jantar? É possível barganhar sem ofender? É necessário tradutor? Os chineses respeitam leis? Contrato assinado significa negócio fechado? O que é "guanxi"? O que significa para um chinês "perder a face"?

A tarefa é hercúlea. Os professores tentam explicar em duas noites um país de 1,32 bilhão de habitantes, 9,6 milhões de quilômetros quadrados e mais de 5 mil anos de história. Os chineses são responsáveis por inventos como bússola, cerâmica, pipa ou pólvora. O sistema político é o comunismo, mas, depois das reformas do líder Deng Xiao Ping, prevalece o entendimento de que "socialismo não é compartilhar pobreza" e que "é glorioso enriquecer-se". Em regiões como Xangai e Hong Kong, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é parecido com o dos EUA, mas na província de Chongqing, no centro do país, é inferior ao do Brasil.

Carlos Eduardo Garcia está sentado na primeira fila. É presidente da Eagles, empresa de despacho aduaneiro. Com o câmbio favorável, pretende abrir em breve uma importadora de autopeças. Garcia conta que negocia com chineses há algum tempo e tem familiaridade com a cultura - é até padrinho de casamento de um chinês. Sua empresa recebe cada vez mais clientes chineses que querem ajuda para começar a importar. "Mas o idioma atrapalha muito", diz.

A consultora Liege Ferlin se esforça para pronunciar corretamente as palavras em mandarim. É apaixonada pela cultura chinesa e viu o anúncio do curso em um jornal na ponte aérea. "Achei bárbaro. Nem sabia que existia." Liege quer aliar cultura e comércio, pois acredita que 50% da negociação é empatia. Está curiosa para saber como os chineses enxergam a mulher como executiva. A célebre frase de Mao Tse-tung diz que "as mulheres seguram a metade do céu", mas o machismo da cultura oriental é forte.

Umas das primeiras lições de Liege e seus colegas é sobre o cartão de visitas. Ao se apresentar, é preciso entregá-lo com as duas mãos. E ao receber o cartão de seu anfitrião, é bom não esquecer que o primeiro nome é o sobrenome. A austríaca Irene Öhler, diretora e especialista em China da consultoria Iglobal, ensina uma coisa curiosa. Ao invés de traduzir o seu nome e o da empresa para o mandarim no cartão, o melhor é se "batizar" novamente. Para os chineses, o nome é importante e traz sorte, por isso deve soar bem e ter um significado que combine com a personalidade da pessoa . Uma tradução literal para o mandarim pode até ficar ridícula. Irene conta a experiência do Carrefour, cujo som significa "Casa Feliz" em mandarim. Foi pura sorte. Se fosse "Casa Triste", teria sido melhor a rede francesa mudar de nome na China.

Mauro Bicchi de Mello, gerente de sourcing da Mundial, preparava-se para distribuir cartões na China pela primeira vez. Os alicates, facas e tesouras da empresa são nacionais, mas utensílios domésticos, talheres, entre outros itens, vêm da China. Mello embarca com o objetivo de encontrar um fornecedor de alta qualidade. Para ser bem-sucedido, sabe que será necessário visitar as fábricas e não visar apenas preço. "Nos últimos seis meses, os preços subiram na China. Ao fazer um pedido, tenho dois dias para decidir, senão sobe de novo", diz. Ele reclama que a tarefa é complicada, porque "lealdade é coisa que não existe na China", referindo-se à pirataria e à quebra de contratos.

Só que tudo depende do ponto de vista. Irene explica que os chineses são muito fiéis à família, aos amigos, às pessoas de sua região, aos colegas de escola, e a outros chineses. Nunca estranhe se um chinês preferir uma empresa nacional a fazer negócio com um estrangeiro, porque é parte integrante da cultura. Um empresário levanta a mão e diz que leu na internet que a negociação pode durar um dia todo e depois recomeçar outra vez. Reconhece que ficou assustado e quer saber se é verdade. A professora explica que o estilo chinês de negociar é "circular", por isso não adianta ter pressa.

"Nem a assinatura significa que o contrato está fechado", diz Irene. "É o começo da negociação. É o oposto do que nós pensamos". A afirmação causa evidente mau-estar na sala de aula. Por isso, a especialista explica que a legislação só começou a existir na China em 1911 com o fim do último império. Novas leis são criadas no país todos os dias, a carreira de advogado é recente e há um déficit de profissionais. Ela diz também que a fronteira entre governo, partido e justiça não é clara e que o veredito de um juiz pode ser desconsiderado pelo representante do partido.

Entre os alunos, está uma chinesa. Irene Chang Ting nasceu em Xangai, mas deixou a China aos sete anos, veio com a família para o Brasil e se naturalizou. Fala mandarim, cantonês e xangainês e hoje é professora de chinês e guia de turismo. Ela viaja com turistas brasileiros para seu país natal e recebe funcionários do governo chinês no Brasil. "Meu objetivo no curso é me atualizar. A China evoluiu assustadoramente nos últimos anos."

A maioria dos empresários já ouviu falar de "guanxi" e quer saber o que significa. O "guanxi" é a arte de construir a rede de contatos pessoais. Quase todos os palestrantes tocam nesse ponto e explicam que trata-se de um "capital" que não tem preço, mas é difícil de conquistar. Para construir o seu "guanxi", é preciso demonstrar conhecimento, respeito pela hierarquia, manter contato regularmente com a pessoa, e ter paciência.

Suzana Bandeira, da Bandeira & Guanaes Consultoria, alerta que é possível um estrangeiro construir "guanxi", mas aconselha as empresas que querem investir no país a contratar empregados que já tenham boa rede de relacionamentos. Um "guanxi" pode ajudar uma empresa a entrar pela "porta de trás", ou seja, desviar de um problema ou conseguir uma autorização especial. Nesse caso, é parecido com o "jeitinho brasileiro". Outro conceito fundamental para os chineses é não "perder a face". O anglicismo "face" indica a imagem social, o prestígio e a reputação de alguém. Na cultura chinesa, a harmonia é muito importante. Logo, é fundamental não perder o controle e não deixar seu interlocutor em uma situação constrangedora, ou seja, preservar as aparências.

Para visitar ou fazer bons negócios na China, é necessário esquecer os preconceitos e aprender que o diferente pode ser você. Alguns chineses cospem no chão, cheiram a alho, esbarram ou quase derrubam as pessoas nas ruas e não pedem desculpas. Para eles é natural, já que a calçada está cheia. Os professores aconselham os empresários a não se ofenderem. Também é preciso ter em mente que a cultura chinesa é indireta. Um "sim" pode significar "talvez" ou mesmo "não". Na China, quando um empresário não diz nada, não significa que concordou, mas o contrário. Ele não concorda com a proposta ou acha que aquele não é o momento de discutir o assunto.

"A etiqueta perdeu um pouco da importância na China nas últimas duas décadas, principalmente para os jovens, que se tornaram individualistas e materialistas", diz Irene. "Mas para os adultos, principalmente os funcionários públicos, a etiqueta ainda é fundamental." Ela dá algumas dicas: chegue na hora, respeite o horário das refeições e não mencione assuntos sensíveis. Entre os temas proibidos estão Taiwan, Tibete, direitos humanos, ocupação japonesa e massacre da Praça da Paz Celestial. Não pergunte a um chinês quantos filhos ele tem. A resposta é óbvia: apenas um. É resultado de uma política governamental e provoca embaraço. Também evite perguntar a opinião de um chinês sobre Mao. Os sentimentos da população são um misto de admiração e vergonha, já que erros do grande líder provocaram milhões de mortes. E uma dica especial para os brasileiros: evitem manifestações efusivas de emoção.

Como na maioria das culturas, a comida é importante na China. Os almoços e jantares acontecem em mesas redondas, nas quais cada lugar é previamente determinado pela hierarquia. Irene diz aos empresários que é obrigatório aceitar um convite para comer. Um executivo reclama que os chineses falam sobre tudo no almoço, menos de negócios, o que irrita quem não tem tempo a perder. É assim mesmo. Na China, a hora da comida faz parte da negociação, mas é um momento de conhecer a outra parte. Irene diz que um jantar é uma ótima oportunidade para falar das relações entre Brasil e China e propor um brinde pela amizade entre os dois países. "Banzei!", que significa saúde em chinês, "e bons negócios", finaliza a professora. Não se esqueça de beber de um trago só o destilado de arroz.