Título: Falta uma alternativa aos subsídios, diz Shannon
Autor: Leo , Sergio
Fonte: Valor Econômico, 23/04/2008, Especial, p. A12

Thomas Shannon, subsecretário de Estado dos Estados Unidos para a América Latina: "Estamos lidando com a crise da melhor maneira que podemos"

A proposta do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de criação de um Conselho Sul-Americano de Defesa, reunindo os ministros de Defesa do continente para discutir temas comuns sem a participação de outros governos, pode ajudar a resolver os problemas da região, afirma o subsecretário de Estado dos Estados Unidos, para a América Latina, Thomas Shannon. Em entrevista ao Valor, Shannon reconheceu que os subsídios agrícolas nos EUA impedem um acordo comercial mais profundo com o Brasil, o que obriga os dois países a buscar alternativas para reforçar os laços econômicos e de comércio. "A esperança é encontrar a chave mágica, que permita enfrentar a questão dos subsídios agrícolas", comentou, admitindo não ver, ainda, essa "chave" ao alcance dos negociadores.

Shannon participou, no México, da versão latino-americana do Fórum Econômico Mundial, evento que reuniu quatro presidentes da América Central e o colombiano Álvaro Uribe. O evento, para surpresa dos próprios mexicanos, foi ignorado pelos manifestantes e organizações não-governamentais, que tumultuaram o mesmo balneário de Cancún, em 2003, quando se realizou na cidade a reunião de ministros da Organização Mundial do Comércio (OMC).

De passagem pelo México após uma viagem à Argentina, onde procurou deixar para trás os atritos do governo Kirchner com Washington, Shannon foi mais explícito em relação às declarações que havia dado em Buenos Aires, sobre o interesse americano em um acordo da Argentina com os credores do Clube de Paris, com quem o país tem uma dívida suspensa de US$ 6,2 bilhões. Mais que interessados, os EUA estão dispostos a apoiar a Argentina para que chegue a um acordo positivo com os credores, garantiu.

Principal assistente para assuntos latino-americanos da secretária de Estado, Condoleezza Rice, Shannon diz lamentar que a visita da chefe ao Brasil e ao Chile, no início do ano, tenha sido interpretada como uma mostra de desinteresse pela Argentina. No Chile, Condoleezza endossou acordos para cooperação do país com a Califórnia para atrair ao país tecnologia de computação; no Brasil, a ênfase foi marcar o interesse comum no combate ao racismo, garante.

Na entrevista ao Valor, logo após o encerramento da reunião do Fórum Econômico, Shannon falou sobre os eventos recentes no continente, como a crise política boliviana, discorreu sobre a cooperação entre Brasil e EUA e comentou até a conversa telefônica, em março, entre Lula e o presidente dos EUA, George Bush, na qual, segundo o brasileiro, Lula, tratando Bush de "meu filho", pediu que os EUA não "atrapalhem" o bom momento na economia brasileira. "Cabe a cada país proteger-se", reage, para, em tom amistoso, comentar que o Brasil já vem fazendo isso.

Valor: A alta mundial dos preços de alimentos pode afetar o programa conjunto dos Estados Unidos e do Brasil para biocombustíveis?

Thomas Shannon: Não acredito. Há várias razões para o aumento dos preços de alimentos, e uma das principais é a crescente demanda por comida em lugares como China e Índia. Não creio que a produção de biocombustíveis influencie decisivamente os preços de alimentos. Nossa cooperação com o Brasil vai continuar e aumentar de ritmo.

Valor: Após um ano de parceria em biocombustíveis, que resultados concretos existem?

Shannon: Estabelecemos o fórum de biocombustíveis que trabalha em padrões e regras para o biocombustível, e estão fazendo um bom trabalho.

Valor: Qual o cronograma para os resultados desse trabalho?

Shannon: Não há cronograma preciso, mas queremos caminhar muito rapidamente. Temos muitos contatos de especialistas, e os resultados, até agora, são muito bons, na troca de resultados de pesquisas. Cientistas americanos vieram ao Brasil, logo brasileiros devem ir aos EUA. Terminamos estudos de viabilidade sobre os potenciais receptores de investimentos privados, El Salvador, República Dominicana, Haiti e Saint Kitts e Névis. Em um ano, dado que é um campo muito novo de cooperação e de desenvolvimento econômico, acho que estamos bem.

Valor: A mudança de governo nos EUA não afetará esse trabalho conjunto?

Shannon: Não. A relação com o Brasil é tão importante e a questão do biocombustível tão interessante e potencialmente importante para as economias dos dois países e de outros, que essa cooperação vai continuar.

Valor: O debate sobre os biocombustíveis aponta o etanol de milho como um vilão. Isso não os leva a pensar em alternativas?

Shannon: A ciência e a economia são claras: o etanol de cana é mais limpo e mais eficiente que o milho. Mas não produzimos cana, produzimos milho. A maior parte de nosso milho vai para alimentação animal, apenas 2% para consumo humano, e uma parte vai para biocombustíveis. Para atender nossas metas de energia, necessitaremos de todo etanol que pudermos produzir e encontrar pelo mundo. Continuaremos com o milho e o etanol de milho, até desenvolvermos a tecnologia para mudarmos para etanol de celulose.

Valor: A demanda pelo milho não afeta fortemente o mercado de commodities alimentícias?

Shannon: Tudo tem impacto econômico, mas seria um erro exagerar o impacto econômico do uso do milho para biocombustíveis. Temos o compromisso do presidente Bush de reduzir o consumo de hidrocarbonetos em 20% em dez anos, precisaremos de todas as possíveis alternativas.

Valor: Para não limitar aos biocombustíveis os projetos comuns entre os dois governos, há novos temas em discussão, além da colaboração futura no setor têxtil?

Shannon: O tema dos têxteis surgiu em nosso diálogo de cooperação econômica. Em almoço, em Washington, entre o ministro [de Relações Exteriores, Celso] Amorim, e a secretária [de Estado dos EUA, Condoleezza] Rice, ambos decidiram que a relação econômica entre os dois países era muito importante para não se conversar sobre ela. Precisávamos discutir as relações comerciais, financeiras e econômicas, procurar pontos de convergência que permitam estreitar a relação de maneira razoavelmente rápida. Houve duas rodadas, vamos fazer outras antes do fim dessa administração e vamos reunir os setores têxteis para ver o que se pode fazer em comum.

Valor: O Brasil começou tarde essa aproximação com os EUA?

Shannon: Sempre é muito tarde, mas essa não é a questão. Governos estavam ocupados, não se pode fazer tudo de uma vez. Investimos, nos EUA e no Brasil, um enorme esforço na Área de Livre Comércio das Américas, e, depois, na Rodada Doha de negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC). A esperança é encontrar a chave mágica, que permita enfrentar a questão dos subsídios agrícolas, abrindo então o caminho para outro tipo de relacionamento econômico, bilateralmente ou no contexto multilateral. Quando ficou evidente que essa chave é muito difícil de encontrar...

Valor: Continua difícil?

Shannon: Esperamos um milagre, mas ninguém o viu ainda. Quando compreendemos que essa chave é realmente difícil de encontrar, Brasil e EUA chegaram à conclusão, mais ou menos ao mesmo tempo, de que não podíamos só deixar que parasse ali, tínhamos de mostrar engajamento na busca de maneiras para continuar aprofundando o relacionamento bilateral. Se encontrássemos a chave as coisas seriam bem mais fáceis.

Valor: O sr acaba de voltar de uma visita à Argentina, entendida como um esforço para retomar uma relação que não anda nada bem...

Shannon: Temos boa relação com a Argentina, ótima cooperação no combate às drogas, imigração, contraterrorismo, organizações internacionais. Mas reconhecemos que, por vários motivos, as relações têm sido definida por suas diferenças. Queremos trabalhar temas de acordo com a Argentina. O propósito de minha viagem ao país foi assinalar nosso interesse na relação, mostrar como é importante. E construir uma estrutura que nos permita conversas regulares sobre essa relação. Identificamos pontos de convergência, os que já citei e outros: promover o turismo americano na Argentina, educação, procurar maneiras de ajudar a Argentina no Clube de Paris...

Valor: Como os EUA ajudarão?

-------------------------------------------------------------------------------- Continuaremos com o milho e o etanol de milho até desenvolvermos a tecnologia para etanol de celulose" --------------------------------------------------------------------------------

Shannon: Ainda faltam mais conversas. Não há solução fácil à mão, mas mandamos um sinal de que Argentina é um país muito importante para ficar fora dos mercados internacionais de capitais, tem perspectivas de crescimento de longo prazo, atraiu empresas importantes, dos EUA e de outros lugares. Quanto mais ajudarmos a Argentina a resolver seus problemas e a retomar o acesso aos mercados de capitais, será bom para a Argentina e para as empresas de outros países lá instaladas.

Valor: Pode haver perdão para a a dívida argentina?

Shannon Não falamos de detalhes, há ainda muito trabalho a fazer. Importante é saber que estamos dispostos favoravelmente a trabalhar com a Argentina.

Valor: Não foi muita coincidência que Condoleezza Rice tenha vindo à América do Sul durante a crise levantada com a invasão da Colômbia em território equatoriano, para destruir acampamento das Farc?

Shannon: Foi uma coincidência que a viagem acontecesse durante a crise Equador-Colômbia. A viagem foi marcada e remarcada antes. Nosso propósito era mostrar que a agenda da região era mais que uma agenda de segurança, tinha um grande aspecto social e econômico, e um grande componente de trocas de experiências.

Valor: Como vê a continuidade de trocas de acusações entre os governos da Colômbia e do Equador, quando se pensava que caminhavam para um diálogo?

Shannon: Essas questões são muito emocionais. Na Colômbia, a idéia de que as Farc usam um território vizinho para seus propósitos é muito preocupante. E para os vizinhos, o medo do conflito na Colômbia, e de conflitos através das fronteiras, também gera uma resposta muito emocional. Uma das tarefas da diplomacia é superar essa emoção e encontrar meio práticos de resolver os problemas.

Valor: O FBI investiga o conteúdo dos computadores que, supostamente teriam informações de ligação da guerrilha com governos da região. Que informações há sobre essa investigação?

Shannon: Há ainda muito material a investigar, não é possível tirar uma conclusão. Temos de esperar e ver o que se pode fazer.

Valor: A crise política na Bolívia, preocupa os EUA? O embaixador americano foi até acusado de fomentar a divisão do país...

Shannon: Isso foi estúpido. Os EUA estão fortemente comprometidos com a integridade territorial da Bolívia e com o sucesso do governo democrático na Bolívia. Deixamos isso claro, mais de uma vez. Queremos o sucesso do povo e da economia bolivianas. As sérias disputas políticas na Bolívia, entre o governo federal e os estaduais precisam ser resolvidas por mecanismos políticos, e diálogo. Alguns atores internos, como a Igreja, estão atuando e intermediando o diálogo, que apoiamos.

Valor: Como o sr. vê a atuação do grupo formado por Brasil, Argentina e Colômbia para intermediar esse diálogo?

Shannon: É uma boa iniciativa, um esforço muito bom.

Valor: Qual a sua opinião sobre as negociações do ministro da Defesa do Brasil, Nelson Jobim, para criar um Conselho Sul-Americano de Defesa, entre países da região?

Shannon: Não temos um interesse imediato em jogo. O ministro Jobim esteve em Washington, com a secretária Rice e entendemos a proposta como um mecanismo concertado, desenhado para promover diálogo entre os ministros da Defesa, especialmente, para assegurar o mesmo tipo de comunicação entre eles que há entre os ministros de Relações Exteriores. Esse nível adicional de diálogo pode realmente ajudar a segurança da região. É uma idéia interessante.

Valor: Não é uma forma de excluir os EUA de instâncias políticas importantes na região?

Shannon: Não. Antes de tudo, temos muito boas relações com os ministros de Defesa e as Forças Armadas de países na América do Sul, e essa iniciativa não interfere ou interrompe essa relação. Há instâncias maiores que nos ligam à América Central e do Sul no nível de ministros da Defesa e Forças Armadas, todo tipo de organização promovendo o diálogo. Esse será uma a mais.

Valor: O sr. ouviu o telefonema entre os presidentes Lula e Bush, no qual o brasileiro disse: "Bush, meu filho, controle a sua crise" para não atrapalhar o Brasil?

Shannon: Li no jornal.

Valor: Qual foi a reação de Bush?

Shannon: Não estava lá, eu não sei.

Valor: E o que pode fazer o governo Bush para evitar impacto negativo sobre a América Latina?

Shannon: Cabe a cada país proteger-se. Em outras palavras, estamos lidando com a crise da melhor maneira que podemos. A realidade é que há muita preocupação, mas o impacto não foi sentido ainda na América Latina. E a razão para isso tem a ver com a forma como os bancos centrais têm sido administrados, com a diversificação das economias, todas as coisas boas que países como o Brasil e outros na região vêm fazendo há muito tempo, que ajuda a protegê-los desse tipo de evento. Nunca sabemos o que pode acontecer.

Valor: Os EUA vêem alguma possibilidade de retomar boas relações com a Venezuela?

Shannon: Deixamos muito claro à Venezuela: ficaríamos muito satisfeitos em sentar e discutir como podemos consertar nosso relacionamento. Há áreas onde poderíamos imediatamente construir um relacionamento. Combate às drogas, por exemplo. A questão é se o governo Chávez quer fazer isso conosco, porque queremos fazer com eles. A aparência da relação não reflete a realidade: temos uma relação comercial de US$ 50 bilhões com a Venezuela, somos o maior investidor estrangeiro no país, a Venezuela é provavelmente o segundo maior investidor latino-americano nos EUA, depois do Brasil, Temos muitos americanos jogando na beisebol na Venezuela, jogadores venezuelanos estão na nossa liga de beisebol. Não deveria ser uma relação rancorosa, insultuosa, deveria ser uma relação boa.