Título: A dívida
Autor: Supachai , Panitchpakdi
Fonte: Valor Econômico, 25/04/2008, Opinião, p. A13

A principal questão que a atual crise do crédito nos Estados Unidos levanta para os países em desenvolvimento é em que medida estão dissociados dela e protegidos contra ela. A economia mundial encontra-se numa situação frágil e essa fragilidade se acentuará, se as perdas financeiras das empresas americanas e européias começarem a se alastrar pelo globo.

Não podemos negar que isso pode acontecer, uma vez que os mercados financeiros mundiais estão se integrando e tornando-se cada vez mais interdependentes. Se a fragilidade se alastrar, comprometerá alguns dos progressos efetuados por muitos países em desenvolvimento nos últimos anos, na área da gestão da dívida nacional, inclusive no que se refere à sua sustentabilidade e composição. Para os países mais pobres, as repercussões serão mais graves.

A existência de riscos interligados realça a importância de se discutirem as novas prioridades das políticas em matéria de dívida externa na reunião da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad XII) que está acontecendo em Acra (Gana), esta semana. Temos, também, que dedicar uma maior atenção para avançar em direção a uma melhor arquitetura financeira da economia mundial.

Um aspecto positivo é que, como grupo, os países em desenvolvimento já não têm um problema de dívida externa líquida, na medida em que o total das suas reservas internacionais aumentou a um ritmo sem precedentes em 2007, ao passo que, em 2006, era praticamente equivalente à dívida externa. Alguns países em desenvolvimento estão apresentando um rápido crescimento, aliado a um excedente considerável dos ativos financeiros sobre o exterior em relação às responsabilidades financeiras exteriores.

A relação dívida interna e externa/PIB dos países em desenvolvimento registrou uma diminuição extraordinária de quase 5%, nos últimos seis anos. A parcela da dívida pública dos governos junto aos credores internacionais também diminuiu, embora subsistam diferenças consideráveis entre as regiões. Por exemplo, no Leste e Sudeste Asiático, a dívida pública externa corresponde a menos 30% do total da dívida pública, ao passo que na Europa Oriental é superior a 55%.

Isto é significativo porque indica uma mudança no sentido de um aumento dos empréstimos contraídos internamente e sugere que o acesso a financiamentos externos não é uma necessidade constante de todos os países. Alguns estudos revelam que uma menor dependência de capitais externos, quer sejam obtidos através do mercado de capitais ou sob a forma de dívida, é algo que contribui para um maior crescimento econômico, e não algo que prejudica esse crescimento. Esses estudos contestam aquilo que se pensava anteriormente, ou seja, que os financiamentos externos são uma condição necessária do crescimento nos países pobres.

-------------------------------------------------------------------------------- É necessário dedicar uma maior atenção para avançar em direção a uma melhor arquitetura financeira da economia mundial --------------------------------------------------------------------------------

Deram-se mudanças radicais na composição dos mutuários e dos mutuantes: a dívida de longo prazo do setor público, contraída com credores oficiais externos, tanto multilaterais como bilaterais, baixou para 42% em 2006, em comparação com 50% em 2000. Ao mesmo tempo, a parcela do total da dívida externa de longo prazo contraída junto de credores privados aumentou para 71%, em comparação com 59%.

Em termos globais, os valores da dívida dos países em desenvolvimento, em 2006, revelam déficits externos em média mais baixos, uma diminuição da dívida externa e um aumento das reservas internacionais. Mas os ganhos não se encontram igualmente distribuídos. Vários países em desenvolvimento de pequena dimensão continuam apresentando uma dívida externa elevada e, ao contrário do que foi prometido, a redução da dívida não tem sido um complemento dos fluxos de ajuda regulares. Subsistem algumas diferenças regionais consideráveis e alguns países asiáticos apresentam rácios de dívida externa baixos, enquanto os países da Europa Oriental e da Ásia Central se debatem com rácios de dívida externa substanciais e crescentes.

As novas prioridades das políticas em matéria de dívida externa devem reconhecer que a incapacidade de reembolso não tem a ver com necessidade de recursos externos. Muitas vezes deve-se a um acesso insuficiente a liquidez externa e não a uma situação de insolvência. Os países muito endividados têm dificuldade em obter empréstimos, embora necessitem de investimentos mais rentáveis para poderem reembolsar seus credores. Isto significa que os países em desenvolvimento devem ser ajudados a criar novos instrumentos financeiros e instituições adequadas às suas necessidades.

Outros países estão em condições de obter mais empréstimos, mas isso pode afetar seu desenvolvimento econômico e social. Não devem ser penalizados pelo seu baixo nível de endividamento e pela melhor gestão da sua economia, sendo injustamente tratados pelos programas de redução da dívida. O reembolso da dívida é um problema tanto para os países de rendimento baixo como os de rendimento médio.

Os países de baixo rendimento apresentam geralmente um elevado nível de endividamento junto a credores oficiais, ao passo que no caso dos países de rendimento médio a dívida tende a ser, sobretudo, de caráter comercial. Estes dois tipos de países merecem ser ajudados quando se vêem confrontados como uma situação de crise da dívida. Por conseguinte, os mecanismos de resolução da crise têm de ser diferentes para cada tipo de país, embora possam estar interligados. Prevenir crises da dívida também exige informação mais pormenorizada sobre a estrutura da globalidade da dívida pública interna, e não apenas que se dedique atenção à dívida externa, como habitualmente acontece.

A Unctad XII é um fórum onde se poderá tomar conhecimento de elementos novos e promissores da situação da dívida dos países em desenvolvimento, por região e nível de desenvolvimento. Oferece também uma oportunidade de se começarem a adaptar medidas de modo a permitir que todos os participantes na economia mundial avancem lado a lado de uma forma que traga benefícios para todos.

Panitchpakdi Supachai é secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad).