Título: Trabalho extra com os vizinhos de esquerda
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Fonte: Valor Econômico, 29/04/2008, Opinião, p. A14

Colômbia e Peru são hoje exceções no mapa político da América do Sul - são governados por políticos de direita ou de centro. As eleições paraguaias deram vitória a Fernando Lugo e o Brasil agora convive com países vizinhos dirigidos, na maioria, por presidentes que se encaixam em algum lugar do que um dia foi conhecido como "esquerda". Há grande diversidade entre eles e, ao contrário do que se poderia imaginar, a tarefa diplomática do Brasil não se tornou de forma alguma mais simples, embora possa no futuro se revelar até mais complicada. Há problemas específicos, de intensidade moderada para grave, com quase todos eles.

As atenções imediatas da diplomacia brasileira estão voltadas novamente para a Bolívia, onde as tensões políticas estão perto de seu limite desde que o governo de Evo Morales manobrou politicamente para alijar a oposição da votação do texto da nova Constituição do país. Os aliados de Morales vetaram no Congresso os referendos regionais sobre autonomia, uma bandeira das províncias mais ricas que não encontrou uma saída política satisfatória, dada a radicalização na Constituinte. Agora, a província de Santa Cruz vai às urnas no dia 4 de maio para decidir se sua população a aprova ou não. Morales, por seu lado, suspendeu a transferência de recursos para Santa Cruz, enquanto que alas do seu governo pregam o enfrentamento aberto. A Organização dos Estados Americanos entrou na disputa para apaziguar os ânimos e a diplomacia brasileira tem feito gestões para buscar uma acomodação negociada.

Nada está garantido e as chances de conflitos de rua voltaram a crescer. Caso obtenha uma votação maciça, a oposição ganhará força para forçar Morales a lhe conceder mais liberdade de ação. As províncias de Beni, Tarijo e Pando já têm plebiscitos marcados. O que for decidido em Santa Cruz afetará as regiões vizinhas e por isso Morales agora abriu um canal de negociação, enquanto continua jogando a carta da intimidação. Seu prestígio sofre um arranhão adicional pela corrosão inflacionária do poder de compra dos bolivianos - a alta de preços caminha para a casa dos 20%.

É a inflação também o tormento do governo argentino. Cristina Kirchner segue o figurino de seu marido, Néstor Kirchner, e não se pode dizer que a situação do país tenha melhorado. A demissão do titular da Fazenda Martin Lousteau, cujo sinal foi um discurso público de Néstor de que não aceitaria frear a economia, é indicação clara de quem governa o país e de que não haverá mudanças no modelo intervencionista dos Kirchner. A elevação dos preços, que os analistas privados colocam na casa dos 20% e não ao redor dos 8%, como aponta o manipulado índice de inflação oficial, levou o governo a suspender exportações, entre elas a do trigo para o Brasil. O Brasil importa 70% de sua necessidade de consumo do produto, cujo fornecedor natural é a Argentina. Com o Brasil, a Argentina, além de tudo, continua jogando a cartada do protecionismo, enquanto operou nos bastidores para conseguir que a Bolívia desviasse parte do fornecimento de gás que o país tem de enviar para o consumo brasileiro.

As dificuldades com o Paraguai começaram a entrar na agenda, embora elas, em princípio, sejam mais simples de resolver. Fernando Lugo se definiu como um socialista moderado, no estilo de Tabaré Vázquez, e a lembrança não foi gratuita. O Uruguai ensaiou bandear-se para o lado dos EUA em acordos bilaterais e já antes alinhava-se com o Paraguai, outro sócio menor do Mercosul, na busca de um tratamento equânime por parte do bloco. A possibilidade de uma ação conjunta dos dois países pode tornar o processo decisório do bloco ainda mais complicado e moroso. Já as demandas de Lugo sobre o preço da energia de Itaipu poderão ser resolvidas na mesa de negociação.

Hugo Chávez, da Venezuela, continua avançando no processo de estatização da economia e quase provocou um conflito bélico com a Colômbia, felizmente evitado. Agora ameaça expropriar a Sidor, que tem participação minoritária da brasileira Usiminas. Em vez de facilitar um consenso no caminho da integração energética, ela se torna a cada dia mais distante. O que os governos vizinhos têm demonstrado é que a esquerda (se o termo é o adequado) pode ter vários matizes, mas uma só cor: a do nacionalismo.