Título: Nuvens no horizonte argentino
Autor: Troster , Roberto Luis
Fonte: Valor Econômico, 29/04/2008, Opinião, p. A14

Uma análise superficial da economia argentina mostra indicadores positivos: preço alto para as exportações; reservas internacionais elevadas; crescimento econômico; desemprego em queda e superávits comercial e fiscal. Entretanto, há sinais inequívocos, que sem uma mudança de rumo, a política econômica está fadada ao fracasso.

O atual ciclo de crescimento argentino, com uma média anual de taxas acima dos 8%, começou pouco antes do mandato do presidente Néstor Kirchner e é resultado da combinação dada pela melhoria dos termos de troca - preços de exportações em alta e de produtos importados em queda, gerando superávits comerciais expressivos, e da renegociação da dívida externa após o calote. Com isso, houve fluxo elevado de divisas que valorizaram o peso e derrubaram a inflação, possibilitando juros mais baixos, bem como a abertura de espaços para as retenções (retenciones - um eufemismo para um imposto de exportação). A renegociação da dívida criou um efeito riqueza forte e abriu precariamente as portas para investimentos externos. Os efeitos de estabilidade, mais riqueza e expansão fiscal, foram fortes, e o país começou a crescer.

A política econômica de Néstor Kirchner tem uma dose de personalismo elevada. Num quadro de enfraquecimento institucional como o de 2001, em que a autoridade presidencial precisava ser reconstruída, isso foi oportuno. As decisões emanavam da Presidência e tinham um componente discricionário forte. Ilustrando o ponto: no controle de inflação prevalece o uso de negociações de margens com supermercados, a intervenção no órgão que mede a inflação e preços máximos para alguns produtos. Foi uma política aceita para administrar o bom momento, mas os sinais de esgotamento do modelo estão reduzindo rapidamente a tolerância com o autoritarismo.

O sintoma mais visível dos problemas que se avizinham é dado pela inflação. Os índices oficiais de preços não têm credibilidade, o órgão responsável pela sua elaboração sofreu intervenção e perdeu a credibilidade. A inflação estimada para o ano passado é da ordem de 15% e para este ano deve ser maior. As diferenças entre as estimativas oficiais e as extra-oficiais são de mais de 100%. A incerteza inflacionária tem efeitos nocivos nas negociações salariais e em contratos de serviços (aluguéis, escolas etc.) piorando ainda mais seus efeitos.

Outro sinal do agravamento da situação é uma crise energética. A prescrição é uma atualização de tarifas e incentivos a investimentos no setor. A reação do governo é não reconhecer a gravidade do problema, subsidiar tarifas e apelar para racionamentos. Cortes de luz e falta de combustível em postos de serviço são cada vez mais freqüentes. Com a chegada do inverno, os problemas devem se agravar. Entretanto, a atitude do governo é de usar apenas medidas circunstanciais.

A popularidade do governo Kirchner estava caindo desde o início do ano passado. A escolha de Cristina Kirchner como substituta do marido insinuou uma mudança e melhorou sua popularidade. Mas a esperança de renovação foi rapidamente retirada com a manutenção do gabinete e os sinais de continuidade. A crise causada pelo lockout agropecuário fragilizou ainda mais a imagem do casal.

-------------------------------------------------------------------------------- País pode cumprir as profecias de que está fadada ao fracasso ou traçar plano de vôo em sintonia com seu potencial --------------------------------------------------------------------------------

O estopim da crise foi o aumento das retenções logo após as eleições. O setor rural, o mais importante da economia argentina, revoltou-se e deixou de enviar mercadorias para os mercados, com manifestações e piquetes. O que mais surpreendeu foi o apoio popular ao movimento. A única coisa que o governo conseguiu foi uma trégua até a próxima sexta-feira, dia 2 de maio. Considerando que o ministro da Economia foi trocado na semana passada, talvez consiga alguns dias mais. Entretanto, é mais um problema latente que só se agrava com o passar do tempo.

Há outros problemas estruturais, como um sistema bancário fragilizado pela crise de 2001, que não atende às necessidades do país; uma legislação trabalhista obsoleta; e um judiciário passível de aprimoramentos. Há também a necessidade de equacionar os créditos que ficaram fora da renegociação da dívida, especialmente com o Clube de Paris. Isoladamente são problemas administráveis, mas em conjunto e sem uma atuação contundente tendem a piorar. Está se entrando num círculo vicioso em que a situação se agrava, a popularidade do governo cai e a margem de manobra para corrigir o quadro se estreita.

A política econômica usada para administrar a opulência está se mostrando incapaz de gerir a crise. A manutenção dessa política pode fazer como que o potencial da Argentina, que é grande, seja dilapidado, mais uma vez. Qual é a saída para o país? É reconhecer os problemas e começar a agir. Negar a realidade só agrava o quadro.

O cenário mundial continua favorável à Argentina. Mesmo considerando a desaceleração da economia americana, o resto do mundo tem uma dinâmica própria que sustenta a demanda por suas exportações, com impacto positivo na atividade econômica interna. Os fluxos de investimentos comerciais e financeiros internacionais estão abundantes. O mundo está se transformando. Avanços tecnológicos e alterações na estrutura econômica criam novas oportunidades de crescimento, que têm que ser aproveitadas.

A Argentina possui recursos naturais abundantes, um nível educacional elevado, indicadores fiscais positivos e demanda elevada por suas exportações. A grande carência é uma política econômica consistente. Falta uma combinação de políticas monetária, cambial e fiscal baseada no mercado, uma política de longo prazo para o setor agropecuário, políticas distributivas que não estejam ancoradas no assistencialismo, equacionamento das pendências do calote externo, enfim, uma visão dos seus problemas que vá além de 2008.

A Argentina pode continuar com o piloto automático e cumprir as profecias de que está fadada ao fracasso, ou traçar um plano de vôo num patamar em sintonia com suas potencialidades. Todas as condições estão dadas: cenário externo propício, um quadro interno administrável, gente e nenhuma barreira intransponível. O país tem capacidade de surpreender.