Título: Haiti: a urgência da fome
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Fonte: Valor Econômico, 28/04/2008, Opinião, p. A14

Uma ausência chamou a atenção durante a 30ª Conferência Regional da FAO para América Latina e Caribe, realizada este mês em Brasília. Haiti, um dos primeiros a confirmar presença na reunião que indicou as prioridades regionais da FAO, cancelou-a de última hora. O motivo: a queda do governo do então primeiro-ministro Alexis, que não resistiu aos protestos contra a alta dos preços dos alimentos e combustíveis. Lembrei do Betinho: quem tem fome, tem pressa. Nem conversar quer.

A fome não começou agora no Haiti, tampouco é um fato novo na vida da maioria dos povos içados às manchetes mundiais nas últimas semanas. Dados da FAO indicam que, no período de 2002-2004, 46% da população do Haiti já estava subnutrida. O país vive em instabilidade econômica, política e social, tem recursos naturais escassos e está localizado numa região afeita a fenômenos climáticos que dificultam ainda mais o atendimento a direitos básicos como o direito à alimentação.

Tomamos o Haiti como exemplo. Mas podia ser a África. Ou regiões da Ásia. O fato é que o drama haitiano espelha desafios que se repetem na rotina de outros povos. Empurrados pela alta dos preços dos alimentos, esses dramas, na maioria das vezes anônimos, ganharam um novo sentido de urgência.

No caso do Haiti, onde a fome não pode ser saciada pela produção - ainda insuficiente - de alimentos, a solidariedade internacional é fundamental e não tem faltado. Exemplos recentes vieram do próprio Brasil: a doação de 14 toneladas de alimentos e um apelo à comunidade internacional que resultou na arrecadação de US$ 5,7 milhões àquele país. Outros governos, liderados pela Venezuela, articulam a criação de um fundo regional de apoio à luta contra a fome.

Mas só isso não basta. Na Conferência que acabamos de realizar em Brasília, os países da América Latina e Caribe enfatizaram a necessidade de priorizar o desenvolvimento estrutural do Haiti e pediram que a FAO facilitasse a cooperação Sul-Sul. A Conferência destacou ainda que os esforços nesse sentido devem incluir não só governos e organizações internacionais, mas também atores privados, do agronegócio à agricultura familiar. A história recente mostra que, sozinhos, nem o Estado, nem o mercado, resolveram os problemas de pobreza, fome e exclusão rural. Pelo contrário, o meio rural da região é marcado por fortes contrastes: um pujante setor agropecuário voltado à exportação convivendo com altos níveis de pobreza.

Daí a necessidade de um esforço conjunto para mudar essa realidade. Seja facilitando o acesso a recursos naturais como terra e água, através de programas de crédito e capacitação, ou garantindo mercados para seus produtos, investir na agricultura familiar é chave para permitir a inclusão social de milhões de pessoas: mais da metade dos 71 milhões de indigentes da América Latina vivem no campo.

No curto prazo, o incentivo à produção familiar pode garantir a auto-suficiência dessas pessoas e melhorar sua renda, ademais de ampliar a oferta local de alimentos. No médio prazo, semeia condições para superar a exclusão e a insegurança alimentar. Muitos governos já estão trabalhando para isso, em alguns casos com o apoio da FAO, por exemplo, através dos Programas Especiais de Segurança Alimentar que existem em 27 países da região.

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Este apoio é ainda mais importante no atual momento de alta dos preços e, em especial, para os países de baixa renda e com déficit de alimentos. Segundo estimativas da FAO, em 2007-2008, esses países devem gastar 56% a mais que em 2006-2007 para comprar comida. Na região, Haiti é o caso mais grave, mas não o único.

A FAO pode e tem ajudado vários países a enfrentar esta situação usando sua experiência na introdução de modelos de agricultura sustentável e na criação de marcos institucionais e políticas públicas que promovam a segurança alimentar. Garantir o direito à alimentação, por exemplo, é o objetivo da Iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome, confirmado como eixo prioritário dos trabalhos da FAO durante a Conferência Regional.

O caso do Haiti traz à luz outro desafio: enfrentar as doenças transfronteiriças animais. Dificultando ainda mais uma situação alimentar complicada, o Haiti suspendeu a importação de frango e ovos da República Dominicana depois que casos de influenza aviar de baixa patogenicidade foram detectados no país vizinho. Manter a região livre da influenza aviar de alta patogenicidade H5N1 asiática e controlar e erradicar outras doenças transfronteiriças faz parte dos esforços para ampliar a oferta de alimentos saudáveis. Isto é importante para a segurança alimentar e para ampliar os mercados compradores dos produtos agropecuários da região.

Da inocuidade dos alimentos à alta dos preços, a 30ª Conferência Regional da FAO abordou diversos temas importantes para o desenvolvimento da América Latina e Caribe. Os debates não resultaram em soluções mágicas, mas o horizonte dos desafios adquiriu uma transparência encorajadora. Ao lado de ações de urgência, governos e organismos internacionais devem se debruçar sobre iniciativas de desenvolvimento que ofereçam respostas não apenas às manifestações agudas da crise, mas também a seus alicerces históricos.

Numa região em que a oferta de energia alimentar per capita é suficiente para que todos tenham uma dieta saudável, o problema não é a produção, mas o acesso aos alimentos: falta dinheiro para comprar comida. O apoio à agricultura familiar ataca o crônico e o agudo na vida de uma das camadas mais vulneráveis da população, garantindo comida para consumo próprio e renda na venda dos excedentes.

Um salto histórico pode ocorrer na associação da produção familiar com um setor de ponta da economia no século XXI: os biocombustíveis. No Haiti, por exemplo, pode-se modernizar a indústria açucareira voltada para a produção de rum e redirecioná-la à produção de etanol. Nos países da região interessados, a FAO vai ajudar a mapear o potencial de produção de bioenergia e apoiar o desenvolvimento de programas que adicionem renda aos que precisam sem ameaçar a segurança alimentar que toda a sociedade almeja.

Os desafios nunca foram tão claros como hoje. Os gargalos trazidos do passado acossam o presente de forma assustadora. Mas embutem também a direção do futuro.

José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe.