Título: Eleição na Câmara afeta reputação do Legislativo
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 16/02/2005, Opinião, p. A10

O PT, costumam dizer os militantes mais ortodoxos, não é mais o mesmo. Apegavam-se até aqui à certeza de que a política econômica seguida pelo governo Lula em nada tem a ver com as crenças e expectativas que por anos alimentaram o entusiasmo da militância. O cisma dentro do partido, originado na divergência quanto à eleição de prioridades, ficou patente a partir do episódio que envolveu a disputa e o resultado da eleição para a presidência da Câmara de Deputados. Se alguém tinha ainda dúvidas sobre as mudanças ocorridas no PT, nestes dois anos em que está no poder, não pode fingir que ignora a realidade: aquele partido orgânico, cheio de diferenças internas mas coeso por necessidade de sobrevivência em suas deliberações, não mais existe. Essa é, talvez, a face mais aparente da eleição ocorrida na madrugada de terça-feira. A vitória do praticamente desconhecido deputado Severino Cavalcanti, do PP de Pernambuco, para presidir a Câmara de Deputados, foi o resultado da inoperância de graduados representantes do PT que, alocados no poder Executivo ou no poder Legislativo, demonstraram total incapacidade de entrosamento, condição absolutamente necessária para garantir a vitória do deputado Luiz Eduardo Greenhalgh, candidato oficial do partido ao cargo. Pior, ficaram sem representante do partido na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados. Articularam mal, negociaram mal e previram mal. Apesar de ter a maior bancada da Câmara - composta por 91 deputados -, o partido está alijado do colegiado de dirigentes que exerce o comando administrativo da Casa. O PT paga agora um alto preço pela sua desarticulação. Mostrou que tem dificuldades em funcionar como partido orgânico justamente quando mais seria necessário fazê-lo, uma vez que chegou ao poder máximo da esfera federativa. A eleição de Severino Cavalcanti, portanto, é o produto do embate entre os petistas. Os simpatizantes da candidatura dissidente do PT, derrotada no primeiro turno, despejaram os votos no segundo turno não no candidato oficial, Greenhalgh, mas no inexpressivo Severino, representante do chamado "baixo clero". Pela forma como se comportaram, aos risos e com ares acintosos de galhofa, como se tudo não passasse de uma enorme brincadeira, a maioria dos deputados federais mostrou que não está à altura de desempenhar a função para a qual foi eleito pelo povo brasileiro. Já antes, a campanha em torno do novo presidente da Câmara se desenvolvera em atmosfera carregada de ressentimentos com a falta de coordenação política do governo. O vencedor político da histórica madrugada não foi, no entanto, o deputado Severino Cavalcanti, mas o secretário de governo do estado do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho. Alinhado desde a primeira hora com a candidatura dissidente do PT, foi Garotinho um dos principais articuladores no processo que deslocou para Severino, e não para Greenhalgh, no segundo turno, boa parte dos votos do PMDB que desde cedo estavam comprometidos com Virgílio. Mas, como se tudo isso não bastasse, a ala oposicionista do PMDB conseguiu o apoio de 48 dos 90 deputados do partido, garantindo para o grupo a liderança da bancada na Câmara. Isso contrariou a expectativa do governo, porque derrubou o atual líder do partido, o governista José Borba. Para seu lugar, foi escolhido Saraiva Felipe, reforçando o poder de Garotinho junto à ala de oposição do PMDB ao governo. Resta objetivamente aos brasileiros conviver agora com um presidente da Câmara cujo posicionamento em torno de questões internas nem sempre vai ao encontro dos anseios de uma sociedade que zela pelos princípios da boa governança. O deputado Severino Cavalcanti é um árduo defensor da equivalência salarial dos deputados com o que ganham os ministros do Supremo Tribunal Federal. Também vê com muita naturalidade a prática do emprego de parentes nos gabinetes da Câmara, conhecida no mundo da política como nepotismo. Todos torcemos para que o Brasil continue avançando democraticamente, parafraseando o presidente Lula, na carta dirigida ontem ao Congresso Nacional. Mas para isso é preciso que o governo recupere o poder da articulação política e que o PT consiga se recompor.