Título: Os argentinos reclamam com a barriga cheia
Autor: Gustavo Segre e Germán Segre
Fonte: Valor Econômico, 16/02/2005, Opinião, p. A10

Somos argentinos, residentes no Brasil, um pouco cansados de ler nos meios de comunicação de nosso país que o Mercosul não serve para a Argentina. O Brasil representa possibilidade muito valiosa para os exportadores argentinos que desejam comercializar produtos no Brasil. Apesar disso, muitos empresários e políticos argentinos se queixam, porque a balança comercial é favorável ao Brasil. Durante 2004 e, pela primeira vez em dez anos, o comércio bilateral entre a Argentina e o Brasil foi deficitário para a Argentina: o Brasil exportou US$ 1,8 bilhão a mais para Argentina. O Brasil exportou à Argentina US$ 7,373 bilhões (um recorde histórico), enquanto a Argentina exportou US$ 5,572 bilhões ao Brasil (valor médio a partir da implementação efetiva do Mercosul, em 1995). Alguns meios de comunicação argentinos se manifestaram - um pouco irresponsavelmente - afirmando que "o Mercosul dessa forma não serve para a Argentina", que "este déficit é o mais elevado da história comercial bilateral", que "a magnitude do desequilíbrio permite supor novos conflitos" etc. Acredito que continuamos nos enganando, quando olhamos a árvore sem notar o bosque. Durante os nove anos em que a Argentina acumulou superávit comercial de US$ 10,407 bilhões com o Brasil (é preciso observar que o valor é próximo do superávit comercial total da Argentina em 2004), o Brasil não se queixou dos resultados contrários à sua economia e tampouco os jornais brasileiros falaram em "magnitude do desequilíbrio", quando, em 2002, a Argentina registrou um superávit comercial bilateral de US$ 2,4 bilhões. A partir de uma postura integracionista, muitos representantes do governo de Fernando Henrique Cardoso (que saía) e do governo Lula (que entrava) entendiam como normal que, em um processo de integração, possam existir épocas melhores para um sócio e não tão boas para o outro, prevalecendo o equilíbrio no longo prazo. Bastou um ano (repetimos: o primeiro em dez anos) para que os míopes saíssem a defender a ruptura do Mercosul. Nem todos os setores econômicos são beneficiados com o Mercosul, porém haveria mais setores prejudicados sem ele. Logicamente, aqueles que pertencem aos setores em conflito, ou que não pertencem ao âmbito empresarial, não compartilham essa visão. O Brasil aumentou as suas exportações à Argentina em 61,7% durante 2004. A explicação para este resultado tem duas visões: 1) o crescimento econômico argentino: onde há maior demanda, é necessário haver oferta (o Brasil exportou US$ 200 milhões em telefones celulares porque os argentinos demandaram telefones celulares e porque as fábricas de telefones celulares estão no Brasil);

O governo argentino não pode pedir à população que não compre geladeira e lava-roupas só porque o produto é brasileiro

2) as melhores condições internas da economia brasileira: créditos favoráveis para empresas exportadoras, inflação sob controle, programas de promoção às exportações que se equiparam aos melhores do mundo (enquanto a Argentina continua cobrando impostos das empresas exportadoras), programas de capacitação para empresários que não sabem exportar, mas querem aprender (enquanto a província de Buenos Aires, para citar um exemplo, cancela o programa de capacitação, que deu excelentes resultados durante anos), um Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES ), que dispõe de recursos e os empresta para gerar mais exportações (enquanto os exportadores argentinos mal se aproximam do Bice e, quando o fazem, não obtêm resultados positivos na maioria dos casos) etc. Uma coisa é certa: o Brasil vende valor agregado à Argentina e esta, por sua vez, lhe vende produtos primários! Na pauta de exportação, a Argentina é dependente do trigo. O trigo representou 13% do total exportado ao Brasil. A má notícia é que a exportação de trigo caiu em 18%, na comparação de 2004 com 2003, e continuará caindo. O Brasil está aumentando a sua produção de trigo e já há Estados, como o Rio Grande do Sul, que estão exportando o produto. Na pauta de exportação do Brasil praticamente não existem produtos primários nos 20 primeiros itens (que representam 29,14% do total exportado para a Argentina). Os argentinos têm duas formas de alterar o resultado da balança comercial bilateral: ou compra menos, ou vende mais (ou ambas as opções juntas). Essa atitude é corriqueira nas empresas, nas quais ou se reduzem os gastos ou se aumentam as receitas (ou ambas as opções juntas). O governo argentino não pode pedir à sua população que não compre celulares, porque a Argentina não os fabrica. Não pode pedir à população que não compre geladeiras, lava-roupas, ou seja qual for o produto, pelo simples fato de ser brasileiro (se o produto for melhor e/ou mais barato do que o produto argentino). Não pode impor entraves em caráter permanente sobre os produtos brasileiros, porque os produtos brasileiros são mais competitivos, enquanto a Argentina não formaliza um programa de melhoria da competitividade da indústria, que precisa ser mais competitiva. Não é possível reclamar que o Brasil importa de outros mercados, quando são poucos os empresários argentinos que assumem atitude ativa na promoção dos seus produtos no Brasil, e poucos são os programas do governo argentino que têm o objetivo de participar do mercado, hoje abastecido por outro país (cujo produto paga imposto de importação para ser importado no Brasil). As importações brasileiras aumentaram em 30%, enquanto as importações brasileiras provenientes da Argentina só aumentaram em 19%. Outro país ocupou esse lugar, que deveria ser do principal sócio brasileiro no Mercosul. Estão dadas as condições para que a Argentina tenha um ano muito frutífero no que diz respeito às exportações para o Brasil, independente do saldo da balança comercial bilateral, que, definitivamente, é conseqüência da união de muitos que compram e de muitos que vendem. Depende apenas dos argentinos (empresas e governo), uma vez que os empresários brasileiros vão importar produtos, seja da Argentina ou de quem quer que trabalhe para atingir esse objetivo.